sexta-feira, 31 de dezembro de 2010

Narrativa em "Arca Russa": algumas interpretações sobre o filme de Aleksander Sokurov

Por Wheldson Rodrigues Marques, graduando em História pela Universidade Federal de Pernambuco



O filme “Arca Russa”, dirigido por Aleksandr Sokúrov, indubitavelmente se enquadra no conjunto das grandes obras cinematográficas, do ponto de vista técnico, pela engenhosidade com que foi produzido, destacando-se neste ponto o trabalho de fotografia. Gravada em apenas uma tomada, sem cortes – ou, numa linguagem mais técnica, num único plano-seqüência – a película imprime um efeito visual considerado primoroso, que é enriquecido pela proeza coreográfica com que cada movimento é realizado pelos atores e também pela câmera em relação às cenas.
Não obstante, “Arca Russa” não é apenas uma obra de caráter técnico interessante. Mais que isso, o filme traz inúmeras questões acerca da História da Rússia, possibilitando reflexões histórico-filosóficas e discussões sobre a memória nacional, as representações de visões de mundo a partir do seu arcabouço artístico e mesmo sobre a própria arte cinematográfica. O enredo consiste, numa descrição demasiado simplista, em um passeio pelos salões do museu Hermitage, em São Petersburgo, empreendido por dois personagens, no qual cada cenário – ou cada sala do museu – corresponde a um momento histórico russo, como sugerem o vestuário, os diálogos entre os personagens e a seqüência de eventos. A quem possa apontar uma relação estreita entre a elaboração estética do filme e a provável indicação de que este expressa a convivência de vários tempos em um só. Contudo, para o próprio diretor, a utilização de um plano-seqüência único, apenas foi viabilizada pelo avanço tecnológico e não se propõe a alcançar quaisquer objetivos artísticos, de uma significação mais profunda (NAKAMURA, 2009, p. 2). Esta observação abre espaço para uma primeira reflexão: a do caráter eminentemente interpretativo da obra, a ser retomada após algumas considerações.
Com o objetivo de estimular um debate sobre o desenvolvimento da narrativa em “Arca Russa”, buscarei relacionar este filme a um texto de Erich Auerbach, intitulado Mímesis, cujo primeiro capítulo – A cicatriz de Ulisses – mostra como se desenvolvem de maneira diversa o discurso homérico, ilustrado na cena da Odisséia, em que Ulisses é reconhecido através de uma cicatriz na perna, e o discurso bíblico, exemplificado no diálogo entre Deus e Abraão e seus desdobramentos; ambos são considerados pelo o autor textos épicos (AUERBACH, 1976, p. 5).
Referindo-se à cena do canto XIX, da Odisséia, Auerbach ressalta o modo como é relatada a passagem, “com exatidão e [...] vagar”, “num discurso direto, pormenorizado e fluente [...]” (Ibid., pp. 1-2). Todos os elementos surgem com nitidez, clareza, ou “uniformemente iluminados” (Ibid., p. 2). Como já foi referido, trata-se da cena na qual a antiga ama de Ulisses, no ato de lavar os seus pés (sem saber ainda quem era aquele homem), acaba reconhecendo-o por conta de uma cicatriz que o mesmo possui na coxa. A partir deste momento, há uma interrupção que objetiva relatar detalhadamente todo o percurso que fez com que Ulisses adquirisse a cicatriz, novamente “não deixando nada no escuro”, relatando todos os fenômenos acabadamente e pormenorizadamente. Então, na construção narrativa, o passado se torna presente e “preenche completamente a cena e a consciência do leitor” (Ibid., p. 3). Conclui Auerbach que Homero não conhece segundos planos, pois os fenômenos sempre emergem num primeiro plano, “em pleno presente espacial e temporal” (Ibid., p. 5).
Por outro lado, quando analisada a passagem bíblica de Abraão sobre o sacrifício de Isaac, é possível perceber um tipo de construção discursiva de alguma forma oposto ao do processo homérico. Na cena em questão não se sabe onde estão Deus e Abraão quando o primeiro chama pelo segundo e este prontamente responde: “Eis-me aqui”. Induz-se apenas que não estão num mesmo plano e que, ao invés de um posicionamento físico, espacial, a frase de Abraão denota mais uma localização moral, de prontidão e obediência (Ibid., pp. 5-6). No desenvolvimento da narração, nenhum elemento de composição das cenas é exposto ou descrito. Pessoas, objetos, diálogos: tudo fica nas sombras ou é dito de forma enigmática. Observa Auerbach que “a viagem [para consumar o sacrifício de Isaac] é como um silencioso andar através do indeterminado e do provisório” (Ibid., p. 7). A inexpressividade do que pode ter ocorrido no desenvolvimento destas cenas, os diálogos obscuros e a existência de segundos planos concorrem para que o relato bíblico requeira, ou melhor, exija interpretações – o que não ocorre com o texto de Homero.
No filme de Sokúrov, um dos personagens já nos é apresentado de maneira pouco convencional: limita-se a uma voz, cuja perspectiva ocular corresponde à da câmera. Este personagem, que não é em nenhum momento nomeado ou apresentado visualmente, mostra-se confuso e diz não lembrar-se de nada, a não ser que ocorreu um acidente (sugerindo perda de parte da sua memória e da sua identidade). Em nenhum momento é revelado, no decorrer das cenas, quem é a pessoa, ou de onde veio – e nem sequer parece haver, posteriormente, preocupação da própria em resolver tal problema. Após alguns minutos ele encontra outro personagem, que depois revela ser um diplomata francês, mas que está igualmente confuso (principalmente porque não compreende como aprendeu a falar russo de repente). Sobre este último, semelhantemente, nada mais nos é revelado, contudo é o único que pode ver e dialogar com o primeiro, como também é capaz – ao contrário do seu novo companheiro – de interagir com os demais personagens que se encontram no museu. As conversas desenvolvidas entre estes dois personagens também são marcadas por certa obscuridade. Torna-se difícil em muitos momentos acompanhar as suas ideias, principalmente quando o que dizem faz alguma referência a detalhes sutis de pontos de vista sobre algum fenômeno ou personagem histórico.
Quando se trata de cinema, é necessário lembrar que um componente importante na construção das ideias é a imagem. Enquanto na literatura é preciso um exercício de criação de uma imagem mental a partir da leitura, no cinema as imagens já são fornecidas de forma acabada e cabe aos espectadores apenas recebê-las, pois elas por si só dizem algo. Contudo considero que seja possível uma reflexão acerca destas lacunas deixadas pelos discursos e na essência dos personagens. De forma similar ao que ocorre na narrativa da Bíblia, o filme “Arca Russa” é extremamente rico em possibilidades interpretativas, contudo, ao contrário das Escrituras, que anseiam disseminar uma verdade universal, a obra de Sokúrov é permeada de incertezas, dúvidas. A Arca navega, mas não necessariamente há uma meta, um objetivo. A única certeza é a de que continuará a navegar.
Nota-se, após alguns minutos percorrendo os diferentes cenários, que há apenas representações da história, dos costumes e das artes das camadas dominantes russas. Poder-se-ia concluir que se trata então de uma obra de exaltação à cultura das classes dominantes, pois apesar do sentimento de nostalgia que marca os últimos momentos da película, o que está dentro da arca e que foi selecionado para sobreviver de alguma maneira são os grandes personagens históricos, a música erudita, a suntuosidade arquitetônica e outros elementos que respondem pela dita alta cultura. Para Danilo Nakamura, há um paradoxo entre aristocracia e democracia na elaboração destas escolhas: a representação da cultura erudita se dá, afinal, por meio do cinema, “que é historicamente entendido como uma arte de massa democrática” (op. cit., p. 3), como o atesta Marc Ferro, sobre a perspectiva da elite intelectualizada européia: “[...] no início do século XX, o que é o cinematógrafo para os espíritos superiores, para as pessoas cultas? ‘Uma máquina de idiotização e de dissolução, um passatempo de iletrados, de criaturas miseráveis exploradas por seu trabalho’” (FERRO, p. 28).
Como uma representação da elite russa em diferentes períodos de sua história relativamente recente, outro ponto se coloca na relação entre o filme e o texto de Auerbach: o passado se faz presente, num plano contínuo e ininterrupto, com um vagar característico de um filme que transmite a sensação de tempo real. Nakamura observa que “o diretor traz para o presente a formação nacional russa [...]”, “numa viagem que presentifica o passado recente da história russa (op. cit., pp. 1-2). É possível pensar uma relação dialógica com o processo homérico, que busca trazer os fenômenos sempre ao primeiro plano, ao presente, causando, nas regressões, uma sensação de retardamento. Contudo, Homero o faz, segundo Auerbach, porque não pode deixar no seu discurso nenhum elemento nas sombras, necessitando defini-lo no tempo e espaço e trazê-lo à luz (AUERBACH, op. cit., p. 3). Considerando a trajetória sócio-política da Rússia, Nakamura faz uso de três interpretações – de Agamben, Ocaranza e Ravetto-Biagioli – com as quais acredita que talvez seja possível entender o passado “presentificado” em “Arca Russa”: a contemplação do vazio do poder, deixado pela URSS; a fantasmagoria de uma elite incapaz de enxergar “a efervescência política e cultural do passado”; e a ideia de nação russa mais como um produto da imaginação do que de fato como decorrência de um passado histórico que a tenha edificado (in NAKAMURA, op. cit., pp. 3-4). Mas talvez seja possível considerar outra via, com a existência de mais de um plano – um deles habitado pelo narrador em primeira pessoa, já que este não é visto nem ouvido a não ser pelo diplomata; contudo não é a noção transmitida pelo filme, pois, apesar de não interagir com os demais personagens, o primeiro narrador de alguma forma vivencia todos os acontecimentos, como se caminhasse pelas salas e corredores do museu.
As figuras dos dois personagens que fazem a viagem pelos salões – os dois narradores – são também objeto de interpretações, como, por exemplo, a de que o indivíduo em primeira pessoa representaria a Rússia e o diplomata a Europa, sendo esta a que anda na frente e guia o passeio, que faz ironia com a habilidade artística russa em copiar a arte européia (ocidental), enquanto a primeira não é notada, passa despercebida (Ibid., p. 2). Enquanto os dois caminham, nos é apresentado um rico acervo de pinturas e esculturas, danças, encenações teatrais e músicas orquestrais, com os quais o diplomata se deleita de modo semelhante aos personagens homéricos, em sua “alegria pela existência sensível” (AUERBACH, op. cit., p. 10). Serão estes objetos artísticos também dignos de salvação, pois representam a memória nacional e retratam o passado, a história da Rússia. Os artistas sobreviverão a todos nós, nas palavras do diplomata. O ato de contemplação da arte adquire um sentido compensatório para Nakamura, que considera a consciência artística um possível “subterfúgio” ou “projeto político”, pois o anseio pela construção (ou quem sabe manutenção) de uma realidade pertinente a determinado grupo social é refletido no campo estético (op. cit., p. 4). Ferro enumera algumas instâncias de onde, para o autor, emanam os discursos sobre a sociedade: uma institucional e ideológica partindo de setores dominantes; outra que parte de uma contra-análise da primeira; a terceira emana “da memória social ou histórica, que sobrevive por meio de sua tradição oral, ou pelas obras de arte legitimadas” (FERRO, pp. 186-187). Há ainda uma quarta instância, que emerge das interpretações independentes, “que procedem a uma análise própria” (Ibid., p. 187).
Incontáveis interpretações podem ainda ser feitas sobre estes e outros elementos do filme “Arca Russa”, assim como o que aqui foi discutido é passível de tantas contestações quantas forem possíveis e pertinentes, a fim de apontar novos caminhos de análise e formular mais questões a respeito da narrativa e das construções discursivas e suas relações no cinema e na literatura. Nas palavras de Ferro: “[...] o cineasta seleciona, na história, os fatos e os traços que possam alimentar sua demonstração, deixando de lado os outros, sem ter que justificar ou legitimar suas escolhas” (Ibid., p. 183). Sokúrov nos presenteia com uma obra que faz jus ao que Walter Benjamin considera a arte de narrar, pois para o filósofo, “metade da arte narrativa está em evitar explicações” sendo “o leitor [neste caso o espectador] livre para interpretar a história como quiser” (BENJAMIN, 1994, p. 203). É neste ponto que reside o que há de mais valioso no filme “Arca Russa”: o seu primor narrativo.
  
REFERÊNCIAS

AUERBACH, Eric. Mimesis: a representação da realidade na literatura ocidental. 2ª edição – São Paulo: Ed. Perspectiva, 1976.

BENJAMIN, Walter. O narrador. In Magia e técnica, arte e política: ensaios sobre literatura e história da cultura. 7ª edição – São Paulo: Brasiliense, 1994. – (Obras escolhidas; v. 1).

FERRO, Marc. Cinema e História. 2ª edição: Paz e Terra.

NAKAMURA, Danilo Chaves. Arca Russa: o reino da aparência estética e os impasses histórico-filosóficos. 16 ago. de 2009. In: http://passapalavra.info/?p=10288. Acessado em novembro de 2010.

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