sexta-feira, 31 de dezembro de 2010

Narrativa em "Arca Russa": algumas interpretações sobre o filme de Aleksander Sokurov

Por Wheldson Rodrigues Marques, graduando em História pela Universidade Federal de Pernambuco



O filme “Arca Russa”, dirigido por Aleksandr Sokúrov, indubitavelmente se enquadra no conjunto das grandes obras cinematográficas, do ponto de vista técnico, pela engenhosidade com que foi produzido, destacando-se neste ponto o trabalho de fotografia. Gravada em apenas uma tomada, sem cortes – ou, numa linguagem mais técnica, num único plano-seqüência – a película imprime um efeito visual considerado primoroso, que é enriquecido pela proeza coreográfica com que cada movimento é realizado pelos atores e também pela câmera em relação às cenas.
Não obstante, “Arca Russa” não é apenas uma obra de caráter técnico interessante. Mais que isso, o filme traz inúmeras questões acerca da História da Rússia, possibilitando reflexões histórico-filosóficas e discussões sobre a memória nacional, as representações de visões de mundo a partir do seu arcabouço artístico e mesmo sobre a própria arte cinematográfica. O enredo consiste, numa descrição demasiado simplista, em um passeio pelos salões do museu Hermitage, em São Petersburgo, empreendido por dois personagens, no qual cada cenário – ou cada sala do museu – corresponde a um momento histórico russo, como sugerem o vestuário, os diálogos entre os personagens e a seqüência de eventos. A quem possa apontar uma relação estreita entre a elaboração estética do filme e a provável indicação de que este expressa a convivência de vários tempos em um só. Contudo, para o próprio diretor, a utilização de um plano-seqüência único, apenas foi viabilizada pelo avanço tecnológico e não se propõe a alcançar quaisquer objetivos artísticos, de uma significação mais profunda (NAKAMURA, 2009, p. 2). Esta observação abre espaço para uma primeira reflexão: a do caráter eminentemente interpretativo da obra, a ser retomada após algumas considerações.
Com o objetivo de estimular um debate sobre o desenvolvimento da narrativa em “Arca Russa”, buscarei relacionar este filme a um texto de Erich Auerbach, intitulado Mímesis, cujo primeiro capítulo – A cicatriz de Ulisses – mostra como se desenvolvem de maneira diversa o discurso homérico, ilustrado na cena da Odisséia, em que Ulisses é reconhecido através de uma cicatriz na perna, e o discurso bíblico, exemplificado no diálogo entre Deus e Abraão e seus desdobramentos; ambos são considerados pelo o autor textos épicos (AUERBACH, 1976, p. 5).
Referindo-se à cena do canto XIX, da Odisséia, Auerbach ressalta o modo como é relatada a passagem, “com exatidão e [...] vagar”, “num discurso direto, pormenorizado e fluente [...]” (Ibid., pp. 1-2). Todos os elementos surgem com nitidez, clareza, ou “uniformemente iluminados” (Ibid., p. 2). Como já foi referido, trata-se da cena na qual a antiga ama de Ulisses, no ato de lavar os seus pés (sem saber ainda quem era aquele homem), acaba reconhecendo-o por conta de uma cicatriz que o mesmo possui na coxa. A partir deste momento, há uma interrupção que objetiva relatar detalhadamente todo o percurso que fez com que Ulisses adquirisse a cicatriz, novamente “não deixando nada no escuro”, relatando todos os fenômenos acabadamente e pormenorizadamente. Então, na construção narrativa, o passado se torna presente e “preenche completamente a cena e a consciência do leitor” (Ibid., p. 3). Conclui Auerbach que Homero não conhece segundos planos, pois os fenômenos sempre emergem num primeiro plano, “em pleno presente espacial e temporal” (Ibid., p. 5).
Por outro lado, quando analisada a passagem bíblica de Abraão sobre o sacrifício de Isaac, é possível perceber um tipo de construção discursiva de alguma forma oposto ao do processo homérico. Na cena em questão não se sabe onde estão Deus e Abraão quando o primeiro chama pelo segundo e este prontamente responde: “Eis-me aqui”. Induz-se apenas que não estão num mesmo plano e que, ao invés de um posicionamento físico, espacial, a frase de Abraão denota mais uma localização moral, de prontidão e obediência (Ibid., pp. 5-6). No desenvolvimento da narração, nenhum elemento de composição das cenas é exposto ou descrito. Pessoas, objetos, diálogos: tudo fica nas sombras ou é dito de forma enigmática. Observa Auerbach que “a viagem [para consumar o sacrifício de Isaac] é como um silencioso andar através do indeterminado e do provisório” (Ibid., p. 7). A inexpressividade do que pode ter ocorrido no desenvolvimento destas cenas, os diálogos obscuros e a existência de segundos planos concorrem para que o relato bíblico requeira, ou melhor, exija interpretações – o que não ocorre com o texto de Homero.
No filme de Sokúrov, um dos personagens já nos é apresentado de maneira pouco convencional: limita-se a uma voz, cuja perspectiva ocular corresponde à da câmera. Este personagem, que não é em nenhum momento nomeado ou apresentado visualmente, mostra-se confuso e diz não lembrar-se de nada, a não ser que ocorreu um acidente (sugerindo perda de parte da sua memória e da sua identidade). Em nenhum momento é revelado, no decorrer das cenas, quem é a pessoa, ou de onde veio – e nem sequer parece haver, posteriormente, preocupação da própria em resolver tal problema. Após alguns minutos ele encontra outro personagem, que depois revela ser um diplomata francês, mas que está igualmente confuso (principalmente porque não compreende como aprendeu a falar russo de repente). Sobre este último, semelhantemente, nada mais nos é revelado, contudo é o único que pode ver e dialogar com o primeiro, como também é capaz – ao contrário do seu novo companheiro – de interagir com os demais personagens que se encontram no museu. As conversas desenvolvidas entre estes dois personagens também são marcadas por certa obscuridade. Torna-se difícil em muitos momentos acompanhar as suas ideias, principalmente quando o que dizem faz alguma referência a detalhes sutis de pontos de vista sobre algum fenômeno ou personagem histórico.
Quando se trata de cinema, é necessário lembrar que um componente importante na construção das ideias é a imagem. Enquanto na literatura é preciso um exercício de criação de uma imagem mental a partir da leitura, no cinema as imagens já são fornecidas de forma acabada e cabe aos espectadores apenas recebê-las, pois elas por si só dizem algo. Contudo considero que seja possível uma reflexão acerca destas lacunas deixadas pelos discursos e na essência dos personagens. De forma similar ao que ocorre na narrativa da Bíblia, o filme “Arca Russa” é extremamente rico em possibilidades interpretativas, contudo, ao contrário das Escrituras, que anseiam disseminar uma verdade universal, a obra de Sokúrov é permeada de incertezas, dúvidas. A Arca navega, mas não necessariamente há uma meta, um objetivo. A única certeza é a de que continuará a navegar.
Nota-se, após alguns minutos percorrendo os diferentes cenários, que há apenas representações da história, dos costumes e das artes das camadas dominantes russas. Poder-se-ia concluir que se trata então de uma obra de exaltação à cultura das classes dominantes, pois apesar do sentimento de nostalgia que marca os últimos momentos da película, o que está dentro da arca e que foi selecionado para sobreviver de alguma maneira são os grandes personagens históricos, a música erudita, a suntuosidade arquitetônica e outros elementos que respondem pela dita alta cultura. Para Danilo Nakamura, há um paradoxo entre aristocracia e democracia na elaboração destas escolhas: a representação da cultura erudita se dá, afinal, por meio do cinema, “que é historicamente entendido como uma arte de massa democrática” (op. cit., p. 3), como o atesta Marc Ferro, sobre a perspectiva da elite intelectualizada européia: “[...] no início do século XX, o que é o cinematógrafo para os espíritos superiores, para as pessoas cultas? ‘Uma máquina de idiotização e de dissolução, um passatempo de iletrados, de criaturas miseráveis exploradas por seu trabalho’” (FERRO, p. 28).
Como uma representação da elite russa em diferentes períodos de sua história relativamente recente, outro ponto se coloca na relação entre o filme e o texto de Auerbach: o passado se faz presente, num plano contínuo e ininterrupto, com um vagar característico de um filme que transmite a sensação de tempo real. Nakamura observa que “o diretor traz para o presente a formação nacional russa [...]”, “numa viagem que presentifica o passado recente da história russa (op. cit., pp. 1-2). É possível pensar uma relação dialógica com o processo homérico, que busca trazer os fenômenos sempre ao primeiro plano, ao presente, causando, nas regressões, uma sensação de retardamento. Contudo, Homero o faz, segundo Auerbach, porque não pode deixar no seu discurso nenhum elemento nas sombras, necessitando defini-lo no tempo e espaço e trazê-lo à luz (AUERBACH, op. cit., p. 3). Considerando a trajetória sócio-política da Rússia, Nakamura faz uso de três interpretações – de Agamben, Ocaranza e Ravetto-Biagioli – com as quais acredita que talvez seja possível entender o passado “presentificado” em “Arca Russa”: a contemplação do vazio do poder, deixado pela URSS; a fantasmagoria de uma elite incapaz de enxergar “a efervescência política e cultural do passado”; e a ideia de nação russa mais como um produto da imaginação do que de fato como decorrência de um passado histórico que a tenha edificado (in NAKAMURA, op. cit., pp. 3-4). Mas talvez seja possível considerar outra via, com a existência de mais de um plano – um deles habitado pelo narrador em primeira pessoa, já que este não é visto nem ouvido a não ser pelo diplomata; contudo não é a noção transmitida pelo filme, pois, apesar de não interagir com os demais personagens, o primeiro narrador de alguma forma vivencia todos os acontecimentos, como se caminhasse pelas salas e corredores do museu.
As figuras dos dois personagens que fazem a viagem pelos salões – os dois narradores – são também objeto de interpretações, como, por exemplo, a de que o indivíduo em primeira pessoa representaria a Rússia e o diplomata a Europa, sendo esta a que anda na frente e guia o passeio, que faz ironia com a habilidade artística russa em copiar a arte européia (ocidental), enquanto a primeira não é notada, passa despercebida (Ibid., p. 2). Enquanto os dois caminham, nos é apresentado um rico acervo de pinturas e esculturas, danças, encenações teatrais e músicas orquestrais, com os quais o diplomata se deleita de modo semelhante aos personagens homéricos, em sua “alegria pela existência sensível” (AUERBACH, op. cit., p. 10). Serão estes objetos artísticos também dignos de salvação, pois representam a memória nacional e retratam o passado, a história da Rússia. Os artistas sobreviverão a todos nós, nas palavras do diplomata. O ato de contemplação da arte adquire um sentido compensatório para Nakamura, que considera a consciência artística um possível “subterfúgio” ou “projeto político”, pois o anseio pela construção (ou quem sabe manutenção) de uma realidade pertinente a determinado grupo social é refletido no campo estético (op. cit., p. 4). Ferro enumera algumas instâncias de onde, para o autor, emanam os discursos sobre a sociedade: uma institucional e ideológica partindo de setores dominantes; outra que parte de uma contra-análise da primeira; a terceira emana “da memória social ou histórica, que sobrevive por meio de sua tradição oral, ou pelas obras de arte legitimadas” (FERRO, pp. 186-187). Há ainda uma quarta instância, que emerge das interpretações independentes, “que procedem a uma análise própria” (Ibid., p. 187).
Incontáveis interpretações podem ainda ser feitas sobre estes e outros elementos do filme “Arca Russa”, assim como o que aqui foi discutido é passível de tantas contestações quantas forem possíveis e pertinentes, a fim de apontar novos caminhos de análise e formular mais questões a respeito da narrativa e das construções discursivas e suas relações no cinema e na literatura. Nas palavras de Ferro: “[...] o cineasta seleciona, na história, os fatos e os traços que possam alimentar sua demonstração, deixando de lado os outros, sem ter que justificar ou legitimar suas escolhas” (Ibid., p. 183). Sokúrov nos presenteia com uma obra que faz jus ao que Walter Benjamin considera a arte de narrar, pois para o filósofo, “metade da arte narrativa está em evitar explicações” sendo “o leitor [neste caso o espectador] livre para interpretar a história como quiser” (BENJAMIN, 1994, p. 203). É neste ponto que reside o que há de mais valioso no filme “Arca Russa”: o seu primor narrativo.
  
REFERÊNCIAS

AUERBACH, Eric. Mimesis: a representação da realidade na literatura ocidental. 2ª edição – São Paulo: Ed. Perspectiva, 1976.

BENJAMIN, Walter. O narrador. In Magia e técnica, arte e política: ensaios sobre literatura e história da cultura. 7ª edição – São Paulo: Brasiliense, 1994. – (Obras escolhidas; v. 1).

FERRO, Marc. Cinema e História. 2ª edição: Paz e Terra.

NAKAMURA, Danilo Chaves. Arca Russa: o reino da aparência estética e os impasses histórico-filosóficos. 16 ago. de 2009. In: http://passapalavra.info/?p=10288. Acessado em novembro de 2010.

quinta-feira, 30 de dezembro de 2010

Ensaio acerca do filme "Rashomon", de Akira Kurosawa

Por Analúcia Batista Cavalcante, graduanda de História pela Universidade Federal de Pernambuco



Memória versus Narrativa versus Verdade


Tu, observou Nicetas, és como o cretense mentiroso,confessas que és um mentiroso de marca e pretendes que acreditem em ti.(...)Pela tua confissão, não sabes mais quem és, e talvez porque contaste muitas mentiras, inclusive a ti mesmo.”[1]


No início do século XX a historiografia passou por um momento de transformação, motivado principalmente pelo surgimento do movimento dos Annales na França, liderado por Marc Bloch e Lucien Febvre. A Escola dos Annales  trouxe à tona novos objetos de estudo, novas fontes e novas interpretações para assuntos outrora consagrados pela historiografia tradicional. Através desta abertura as produções cinematográficas começaram a ganhar espaço como objeto de análise do historiador. O cinema enquanto objeto de estudo, conhecimento e informação pode ser analisado, de acordo com Antonio Costa[2], da seguinte forma:
A. A história no cinema: analisa os filmes enquanto fontes de documentação histórica e meios de representação da história com a possibilidade de utilizá-los em conjunto com outras fontes.
B. O cinema na história: analisa a repercussão que os filmes alcançam na sociedade, podendo assumir um papel importante no campo da propaganda política e na difusão de ideologias.

Porém, vale ressaltar que a construção de uma narrativa histórica com base em fontes cinematográficas deve ser feita cautelosamente, uma vez que vários elementos devem ser levados em consideração na análise e interpretação de um filme e não somente a trama em si. Um filme pode ser encarado como uma representação do contexto de sua produção, como um agente da história e não só um produto, como um agente de conscientização e mais ainda, deve-se buscar o que existe de não visível, uma vez que o filme muitas vezes excede o seu próprio conteúdo. De acordo com Marc Ferro[3]Leitura histórica do filme e leitura cinematográfica da história: esses são os dois últimos eixos a serem seguidos para quem se interroga sobre a relação entre cinema e história. A leitura cinematográfica da história coloca para o historiador o problema de sua própria leitura do passado”.
O filme que escolhi para dar vida a este ensaio foi o produzido por Akira Kurosawa na década de 50, Rashomon. Kurosawa chega com este filme ao Ocidente e revela-nos uma nova estrutura narrativa, bastante ambiciosa quando observada atenciosamente. Em Rashomon, as ações são contadas em três tempos distintos – os fatos mais importantes são flashbacks dentro de flashbacks. Há portanto, o presente ( a espera pela chuva passar, com a conversa entre os três homens), o passado recente (o julgamento do bandido acusado pelo crime, em um pátio iluminado pelo sol) e o passado distante (o assassinato na floresta). Apesar de alternar os três tempos, a narrativa jamais fica confusa ou empolada por causa disso. O ritmo é ágil e as cenas, bastante dinâmicas.
Rashomon possui desdobramentos de versões e pontos de vistas sobre um mesmo personagem, de modo que nos faz questionar a verdade em primeiro plano e a imagem como verdade, em segundo plano. Um dos trabalhos árduos do historiador é justamente a busca da verdade através das narrativas, sejam elas escritas ou orais.  Dado o volume significativo e a importância  indiscutível das  obras e dos autores que discorrem sobre o tema história e verdade, não serei tão ousada a ponto de acrescentar uma nova tese acerca de tal tema. Quero apenas afirmar aqui que, o historiador sente dificuldade em obter objetividade.
O historiador é acusado de produzir um conhecimento instável, discutível, com interpretações que se sucedem. Um conhecimento que não é objetivo. Mas o que seria este tal conhecimento objetivo? “Objetivo” nos dicionários, é o que existe fora e independentemente do sujeito. Para Popper, objetivo seria um conhecimento independente de capricho pessoal e justificado, submetido a prova e compreendido por todos; ele estabeleceria regularidades intersubjetivamente comprováveis.[4] Os historiadores então, mentem quando reeescrevem constantemente a história? Kosseleck (1990) formula esse problema assim: a história não pode negar que precisa sustentar  duas exigências que se excluem – produzir enunciados verdadeiros e admitir a relatividade de suas proposições. É uma aporia.
Portanto, todo conhecimento histórico  é ao mesmo tempo uma tomada de posição, um ponto de vista relativo e que deseja ser verdadeiro. Entendido então o conhecimento objetivo, entende-se que é capaz de oferecer a verdade. Mas o que é a verdade? Tema filosófico por excelência. A reflexão sobre a verdade é difícil. O filme de Kurosawa, Rashomon, nos revela exatamente o quanto é difícil de se obter a verdade (dos fatos) – tanto para o juiz, personagem do filme em questão, quanto para  o historiador, diante de seu objeto.Kurosawa, através de Rashomon teve a coragem de mostrar quão difícil, ou mesmo impossível, é encontrar a verdade quando existem conflitos de pontos de vista, ao ponto dos psicólogos passarem a utilizar aquela designação para situações semelhantes. O conhecido “Efeito Rashomon”.
Afinal, a memória é traiçoeira e trabalha através das recordações. A memória não é propriamente um arquivo  no computador, para qual corremos quando desejamos reviver um evento. Quando registramos algo na nossa memória fazemos com que os acontecimentos se “desintegrem” e fiquem “espalhados” pelo cérebro. Depois, ao invocá-los, vamos juntando as peças de forma a reconstruir os acontecimentos. Reconstruir e não reproduzir.
Acontece, no entanto, que no processo de reconstrução são introduzidos elementos provenientes do próprio narrador, fruto das suas vivências, das suas expectativas, dos seus preconceitos, do seu nível cultural, dos seus “esquemas” mentais, ao ponto de omitir parte da informação, que considere irrelevante, dar enfase ao que é mais significativo, racionalizar as partes que não faziam sentido, tudo isto com o objetivo de transformar a história mais compreensível a ele próprio, ao narrador.
Ou seja, a influência da subjetividade na interpretação da sensação (da Realidade) já é assunto bem conhecido e bem estudado pelos clássicos historiadores alemães e franceses. A Realidade (mundo externo) é uma só, e é como ela é, nós é que interpretamos conforme nosso patrimônio cultural (cognitivo, afetivo, volitivo, ético, estético). É essa subjetividade que cabe ao historiador (e neste caso, ao juiz, personagem mediador do filme) avaliar nos depoimentos.
Pesoalmente falando e percebendo com o olhar atual, Rashomon pode provocar alguma estranheza pelo caráter teatral e exagerado das atuações, bem longe do naturalismo que o cinema contemporâneo costuma perseguir.  Como por exemplo, a risada maníaca e a  expressão corporal de Toshiro Mifune, que interpreta o bandido Tajomaru, que se move como um felino. Apesar da sensação de estranhamento, as atuações funcionam muito bem dentro do mundo fabular do filme. O maior destaque é Fumiko Honma, que protagoniza uma seqüência assustadora como uma diabólica médium. A complexidade existencial também se faz presente nos personagens deste filme do Akira. Os três homens que conversam, abrigados da chuva, sob o teto do templo  são um exemplo disto.
De acordo com Deleuze[5], os personagens de Kurosawa são vítimas perpétuas da urgência existencial e, ao mesmo tempo em que eles são vítimas dessas urgências, que são questões de vida ou morte, eles sabem que há uma questão ainda mais urgente, embora não saibam qual. E é isso que os paralisa.
O objetivo de Kurosawa em Rashomon, é reconstituir um fato a partir de memórias alheias.   Esta pauta específica do diretor japonês não fica tão longe do trabalho de um historiador, quando se vê diante de milhares de fontes, constituídas basicamente de memórias, e com o objetivo de criar uma verdade histórica. Após ouvir os relatos de Tajomaru (“Fui eu, Tajomaru, quem matou aquele homem. Foi numa tarde quente, que os vi. De repente, houve aquela brisa fresca. Se não fosse por aquela brisa, eu poderia não ter matado ele”). O homem, que aguarda a chuva sob o templo, antecipa o ponto de vista do diretor através de uma fala, aos 35 minutos do filme, mais ou menos: “homens são somente homens, e por isso mentem. Não podem dizer a verdade, mesmo a si próprios”. Então, preso pela chuva, o homem ouve os relatos para passar o tempo. Entreter é uma das funções de uma narrativa. Aqueles homens reunidos embaixo do templo(Rashomon) têm tempo suficiente para se distraírem, e também de se irritarem com os vários relatos acerca de um mesmo fenômeno (o assassinato de um samurai na floresta).
Há um desapontamento com a natureza humana, mas a crença é retomada num certo movimento de reflexão. Os pensamentos se deslocam e conduzem a uma retomada da fé nos homens no final do filme, mas que se mostra bem diverso no início! O filme de Kurosawa não fica girando apenas em torno de três histórias, acionadas por um observador comprometido com o seu objeto. Rashomon termina sem nenhuma condenação.
Quantas narrativas existem que começam com uma negação, que remete a uma perplexidade, e se encerra com uma afirmação, com uma ação positiva? As versões dos personagens em Rashomon se justificam, não apenas porque são de várias pessoas, mas porque estão associadas a visões diversas, concepções de mundo diversas.



[1]    ECO, Umberto. Baudolino. ed. Record. Rio de Janeiro, São Paulo, 2001. Cap.03, pag. 41.
[2]    COSTA, Antonio. Compreender o Cinema. 1989. p. 27.
[3]                 FERRO, Marc. Coordenadas para uma pesquisa. In: Cinema e História.
                Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1992. p.13-19. [primeira  ed. francesa: 1977; o texto em questão é de 1976]
[4]    Popper, 1993.
[5]    DELEUZE, Gilles. Ato de Criação. Folha de S. Paulo. Suplemento Mais!, 27/06/1999, p.5.

Ensaio sobre o filme um olhar a cada dia

Por Uziel Pereira Bezerra, graduando em História pela Universidade Federal de Pernambuco


Antes de tudo, já que o ensaio trata de uma epopéia, como Ulisses, ou Odisseu, é importante destacar alguns textos tomados como base para tal. Como Mimesis de Erich Auerbach, As raízes clássicas da historiografia Moderna de Gabriela Albareza, além da Poética de Aristóteles. Mimeis e Poética trata sobre a narrativa. O Auerbach vai dizer categoricamente que o Tácito é historiografia antiga. E vai mais além afirma também que a Bíblia é um material épico, lendário. É preciso então entender a relação entre história e literatura entre os antigos. O que de inicio causa uma agonia, desestabiliza a ótica ocidental porque ao anilisar epopéia, romance e historiografia, se ver que o mesmo texto que aparece como historiografia judaica, por exemplo, aparece como epopéia. Apesar de  se perceber um estanque abrupto no século 1ª d.C, da historiografia bíblica, permanecendo em contrapartida a historiografia grega provou ser tão vital, inclusive influencia os humanistas nos séculos XIV e XV. Com exceção em parte de Maquiavel que escreve sua obra política a partir da observação da experiência real do seu tempo, rompendo com as tradicionais filosofias político-teológicas grega e cristã.
            No entanto no século XVI vai se criar a filosofia da história que tem agora um fim. O que passou-se a chamar de história universal de origem judaico/cristã. Impondo um domínio sobre outras possibilidades e leituras da realidade. Inclusive enquadrando estas possibilidades dentro da sua perspectiva escatologia, a exemplo de Paulo e dos pais da igreja no século I que apontam o cenário político de sua época a partir dos texto vetero-testamentários. Montesquier vai dizer que Deus intervêm na história, entretanto defende veementemente a idéia de progresso.
Bom fazendo estas considerações. Que são apenas alguns toques bem de leves na tela para a pintura. E já que o obetivo é fazer uma relação dos textos com o filme. Vamos ao ele. Estamos falando do filme Um Olhar a Cada Dia de Theodoros Angelopoulos, que nos leva a deleitar e ao mesmo tempo nos fazer pensar.
E já que nos põe a pensar, uma pergunta: O homem evolui no período que separa os dois extremos de um mesmo século? Se a sua resposta é "sim", saiba que Angelopoulos pode achar nem óbvia, nem absoluta, tal asserção. Neste filme, o diretor heleno mostra, à sua moda, que a pureza da alma humana está ficando para trás e que a barbárie, se não cresce, muito menos se extingue ao longo do tempo.
A odisseia de um Ulisses moderno é recontada livremente por um Angelopoulos-Homero que, por meio de um protagonista sem nome - um cineasta grego (o americano Harvey Keitel) de volta à sua região natal -, apresenta seu desencanto na humanidade. O tempo da história narrada é o da época de sua realização, primeira metade da década de 1990, com a Guerra da Bósnia em andamento e lhe servindo parcialmente de cenário. O herói faz sua jornada pelos Bálcãs em busca de três rolos de filme não-revelados dos irmãos Manakis, pioneiros da fotografia e do registro cinematográfico cotidiano em terras argivas e nações arredores. Singrando ele não por águas marítimas jônicas, mas por territórios balcânicos em momento hostil, efetiva uma busca que vai além do objetivo material. Os rolos históricos dos Manakis são somente o McGuffin de uma viagem mais que meramente física, sobretudo lírica.
Esse novo Odisseu vai em busca dos rolos dos filmes, e não em busca de Penélope. Cada lugar que ele chega, encontra e conhece uma pessoa, conta histórias e interage com ela. A narrativa tem um eixo principal e várias histórias ao longo da jornada. se aproxima de mulheres. É meio Ulisses.
A procura pelos registros iniciais do século 20 em forma de filmes documentados por pioneiros transcende o mundo palpável. O que o personagem central quer é captar a essência do olhar do começo daqueles anos - uma visão de mundo certamente bem mais pura que a do final do mesmo período. Depois desses tempos de paz assinalados em fotogramas pelos irmãos documentaristas, a região enfrentou conflitos tempestuosos: as guerras Balcânica, Primeira e Segunda Mundial e bem mais adiante, a da Bósnia. Em força disso, a inocência desaparecida se transforma no pote do final do arco-íris: um tesouro inalcançável. A entropia causada pela ambição e "evolução" humanas irreversivelmente leva embora uma percepção mais doce, pacífica e pastoral do mundo, deixando no lugar desta uma malquerença crescente. A origem desse mal, na visão dos roteiristas (entre os quais o diretor e também o lendário Tonino Guerra, escritor das obras de Antonioni) está na política, no nacionalismo ufanista e na intolerância étnica que assolaram a região. Curiosa e paradoxalmente, o herói vai buscar paz espiritual numa região de conflito armado corrente.
Angelopoulos, com seu cinema contemplativo e de reflexão, define-se bem quanto ao seu modo de filmar. Fazendo uso de uma câmera fluida, por entre travellings, zooms e gruas, ele leva a cabo uma lenta (e necessária, dentro de seus propósitos) narrativa convencional pontuada de planos-sequência engenhosos. Um destaque àquele que introduz em cena o personagem de Keitel, esse Ulisses moderno do filme. Rodado à noite, com passagens variadas de locações e bom número de figurantes, assombra pela perfeição de sua execução e rara beleza. É talvez um dos mais espetaculares que o Cinema testemunhou. Cenas como as duas consecutivas que focalizam refugiados albaneses - ora estáticos (lembrando uma inesquecível cena de O Ano Passado em Marienbad de Resnais), ora em movimento a diferentes tempos -, aquela da jornada da estátua de Lênin (com sua colossal cabeça como a observar a derrocada de seu regime político) e outra que realiza uma variação sobre O Baile de Ettore Scola já carregariam intrinsecamente, cada qual delas, enorme significado dentro dos respectivos contextos apresentados. Mas Angelopoulos não se contenta apenas com isso: reveste essas mesmas passagens com uma poesia visual de tirar o fôlego.
Há tanto apuro imagético, principalmente na primeira metade do filme, que o roteiro parece se tornar secundário. Primeira impressão, pois forma e conteúdo aqui caminham de mãos dadas, infreqüente cônjuge. Theo conhece igualmente o poder da sugestão, e exemplo disso é o uso de um conjunto mais-que-perfeito de contextura, imagem e som para realizar tal efeito, o que se dá na trágica cena da neblina em Sarajevo, quando o espectador é arremessado ao drama então vivenciado pelo protagonista, o qual tem de imaginar a ação onde não a pode ver. Lembro-me da discussão de Auerbach ao acentuar a diferença entre a Odisséia e as narrativas bíblicas, principalmente no Velho testamento, que mesmo, para ele, sendo ambas epopéias, no sentido de narrar a viajem de um personagem, a odisséia é completa em si, ao ser construída com detalhes, mas a Bíblia diferentemente é dramática ao propor a incompletude de seus personagens. O que os torna completos, pois ao leitor fica a tarefa de aprofundar e mergulhar no que Auerbach chama de segundo - plano. Um aspecto psicológico que, sugere o referido autor, causa diferença e impacto no leitor. Angelopoulos, apesar de estar trazendo para nós uma Odisséia moderna usa dessas estratégias para impactar.
Com uma fotografia esplêndida obtida, mormente sob céus plúmbeos, trilha sonora gentil, atuações comoventes de Keitel e Maia Morgenstern (esta a representar todas as mulheres parceiras na tristeza do Novo Ulisses) e tantos outros predicados, esta obra de quase três horas de duração se afirma como uma das peças fundamentais do final do século passado, aquele conturbado período abraçado por quem retratou a procura por um olhar perdido, definitivamente perdido: um olhar tragado pelo caos.

Um olhar a cada dia inicia tímido. Sem muita divulgação.
A começar pelo nome. To vlemma tou Odyssea, o nome grego da película de 1995 de Theo Angelopoulos, traduzido para o inglês, literalmente, como O olhar de Ulisses, ganhou, entre nós, o título algo poético: Um olhar a cada dia. Trata-se, talvez, de uma referência a uma cena específica do filme, como citado de alguma forma antes, em que o personagem principal, um Odisseu moderno, que atravessa os Bálcãs em busca de uma fita de vídeo, fica preso em uma ilha, em que sua memória parece obnubilada pelo encantamento de uma mulher que impede a toda hora sua partida. Se o século XX teve no Ulisses de James Joyce a mais brilhante releitura da Odisséia, a obra de Angelopoulos reatualiza o mito num contexto de guerra que relembra, também, a importância da região na trajetória da civilização ocidental, desde o seu “surgimento” na Grécia, até o período helenístico, na Macedônia de Alexandre.

Para quem viu na remoção da estátua de Lênin, no filme “Adeus, Lênin” uma grande cena, vai se impressionar com a transposição de outra estátua do russo em um barco – releitura magistral da cena em que Ulisses enfrenta o Ciclope.

Há claro, motivos suficientes para se apreciar a película sem necessariamente conhecer todos os episódios do épico grego. O mais relevante deles, talvez, seja a maneira como o diretor é capaz de construir belas cenas num pano de fundo tão tenebroso quanto o da guerra dos Bálcãs. Não será, contudo, um caso ilegítimo de esteticização da miséria ou da guerra. Trata-se, apenas, da habilidade de um diretor em revelar que a vida – não apenas no sentido exaltado por valores morais e estéticos clássicos, senão em sua plenitude de violência, beleza, ódio e amor – segue seu curso mesmo ali onde não conseguimos ver além do pó. Uma visão certamente humanista, mas que se renova quadro a quadro.
Referências
ANGELOPOULOS, Theodoros (diretor). Um Olhar a Cada Dia (To Vlemma Tou Odyssea). Duração: 176 min.

AUERBACH, Erich. Mímesis: a representação da realidade na literatura ocidental. Tradução de George Bernard Sperber. 2ª Ed. São Paulo: Perspectiva, 1976.

CERTEAU, Michel de. A Escrita da História. Rio de Janeiro: Editora Forense Universitária, 2002.

MOMIGLIANO. Arnaldo. As Raízes Clássicas da Historiografia Moderna. São Paulo: EDUSC, 2004.

quarta-feira, 29 de dezembro de 2010

Da superação da verdade inexistente (E um pouco de História e Cinema)

Por Victor Vitório de Barros Correia, graduado em História pela Universidade Federal de Pernambuco


Filmes podem ser percebidos de várias maneiras, e nem todas elas abordam a estética da arte. Do ponto de vista do roteiro o cinema é herdeiro da literatura e do teatro; contar histórias está entre suas principais funções e disto deriva um dos maiores empecilhos para que o historiador veja no cinema uma ferramenta eficaz. O problema está na questão do realismo que o cinema pretende ao fazer uso da visão, nosso sentido mais amplo. Por isso, pressupõe-se que o filme histórico planeja narrar sua história de maneira verossímil, quase real, como se levando o espectador a acreditar que vê o passado tal como foi.
            A História “tal como foi”, ou seja, a narrativa objetiva de fatos é finalidade positivista e, portanto, pensamento ultrapassado em meio às teorias da História. Da mesma maneira, porém, a profusão do cinema trouxe-lhe espaço para expandir-se em suas formas narrativas, e o filme, ao invés de ser considerado como pretensão da imagem mais próxima do real – e por isso nada mais que uma quimera superficial – deve ser visto como expressão. O resultado desse pensamento é que o papel do cinema no ofício do historiador depende de dois sujeitos: o cineasta, que constrói sua obra imbuída de sentidos, conscientes ou não; e o próprio historiador, que deve superar as camadas óbvias para analisar seus documentos criticamente.
            Se compararmos essas duas atividades a conclusão é que são, a priori, bem diferentes. O historiador é supostamente comprometido com a verdade, enquanto o cineasta – salvo o documentarista – está mais voltado para a ficção, aproximando-se do romancista. No entanto, pincelando um pouco mais a poeira que reside na questão, logo teremos que admitir que essa distância é ilusória, e uma palavra pode resumir o assunto: autoria. O autor é aquele que cria, que exprime através de uma obra; associar o historiador à criação pode significar equipara-lo ao artista. Não há dificuldade em colocar a historiografia como obra autoral, pois, de Heródoto a Murilo de Carvalho, o estudo da história é associado ao autor que o conduziu.  
            Marc Bloch atenua o problema, ao encarar que “nenhuma ciência seria capaz de prescindir da abstração. Tampouco, aliás, da imaginação”[1].  Como ele mesmo indaga, porque temeríamos essas palavras? Usar de abstração não deve relegar a história ao campo da ficção, mesmo que seu oposto, “verdade”, seja um conceito complexo demais para atribuir à produção do historiador. Em que território, então, ficará o conhecimento histórico?

“Confie apenas na história, nunca no contador[2]

Certa aula, o professor Rodrigo Carrero citou uma anedota do filme Tubarão (Jaws, 1975), sobre a cena final. O roteirista alertou o diretor Steven Spielberg que na realidade um tanque de ar comprimido jamais explodiria da maneira que este desejava para o filme, e a resposta foi apenas de que, caso o público aceitasse o restante do filme, tomaria como verdadeira qualquer cena que surgisse na fita. Simples assim.
Qualquer atividade que exija narrar, contar histórias, parte desse mesmo princípio: tomar a atenção e a aceitação do espectador, capturá-lo em sua trama. Junto com o romancista e o cineasta, o historiador está na empreitada de mostrar algo ao seu público, e sua obra deve ser entendida a partir desse princípio. A verdade completa é, em essência, ininteligível demais para ser alcançada, e por isso não deve ser presumida nem defendida. O que resta, então, é a intenção que impulsiona o ato de criar, ponto importante na análise historiográfica, pois quando essa reflexão trouxer resultados, a veracidade dos fatos se tornará dispensável, e a dúvida que se esvai é um fardo a menos para quem prossegue no estudo historiográfico.
O ofício de criar verdades baseia-se na verossimilhança, ou seja, que o relato seja aceitável dentro de seu próprio contexto. Isso é o que Tolkien chama de sub-criação, processo imprescindível para uma boa ficção. Enfim, quer dizer que deve haver coerência e explicações plausíveis com a lógica humana, embora seja fictício.
Há duas formas interessantes de entender o verbo explicar, de acordo com Paul Veyne[3]. A primeira implica em atribuir um sentido à coisa explicada, isto é, desvendar os princípios por trás do objeto estudado. A segunda forma de explicar consiste apenas em fazer-se compreender a alguém. Enquanto esta segunda proposta visa à associação de idéias para atingir uma finalidade expositiva, a anterior busca o meio que trará as causas. “Aparentemente, a explicação parece, por vezes, tirada do mundo da abstração”[4], diz o autor. Veyne afirma isso em crítica à explicação histórica, mas deve-se levar em consideração que estamos presos a essa sina. Afinal, Clio é filha de Mnemósine[5] e “o processo da memória no homem faz intervir não só a ordenação dos vestígios, mas também a releitura desses vestígios”. Em outras palavras: abstração subjetiva.
Podemos, portanto, comprar o ofício do historiador com o do cineasta, abordando a questão de que o ponto de convergência de História e cinema é a relação entre narrativa e memória, elementos intrínsecos a essas duas artes. Tendo em vista essa relação, quero abordar dois filmes: Rashomon (1951) e Herói (2002).

“Não entendo.”

O diretor Akira Kurosawa é celebrado em todo o mundo, mas em seu tempo sofria críticas dos conterrâneos quanto ao seu estilo. Diziam que ele tinha muita influência ocidental e não honrava a arte dramática japonesa, o teatro .
Seu filme Rashomon é ambientado no passado, mas isso não o torna um filme histórico, uma vez que a alusão temporal pouco – ou nada – importa para o enredo, que é bem simples: um bandido é preso por matar um samurai e os testemunhos são ouvidos um a um – o bandido, a esposa, o espírito do morto e o lenhador que encontrou o corpo contam suas versões do crime.
Não é possível distinguir o período no qual a história se desenvolve, pois as referências visuais fornecidas abrangem vários séculos do cotidiano japonês. Portanto, a história narrada não busca encaixar-se no tempo, mas no próprio ser humano. Os sets minimalistas evitam distrações, deixando mais espaço para a narrativa em si e a atuação. Todas as cenas passam no portão que dá título ao filme e onde são recontadas as versões da história, na floresta onde acontecem os fatos narrados, ou no pátio onde a polícia entrevista as testemunhas.
É nesse contexto que o filme Rashomon lida com metalinguagem: é uma história sobre contar histórias. Mais precisamente, reflete sobre a natureza subjetiva do testemunho, não apenas devido ao narrador, mas também ao espectador, pois aqui este é figura fundamental: as histórias contadas são diferentes versões de um mesmo crime, e todas contradizem umas às outras. O espectador é importante por não ser onisciente da trama, tendo que ouvir cada trecho diferente para julgar por si mesmo. Essa posição de juiz é ressaltada pelos depoimentos, pois, apesar dos personagens se encontrarem na corte de justiça, a câmera não mostra o responsável por averiguar os testemunhos, nem suas perguntas são captadas. Todos os personagens falam olhando para a câmera, narrando diretamente ao espectador sua versão dos fatos.
A psicologia usou o filme na criação de um conceito, o Efeito Rashomon¸ que sugere a subjetividade da memória. Uma vez que a memória e os testemunhos são peças-chave no estudo histórico, o filme corresponde-lhes elucidando que o relato é em si mesmo parcial e, diversas vezes, puramente mentiroso.
Kurosawa, ao fim do filme, faz uma digressão: os personagens que contam a história, desacreditados da natureza humana por causa das mentiras e seus motivos tolos, encontram um bebê abandonado e com ele sua chance de redenção. O diretor é um otimista, deixando que essa virada conduza a conclusão do enredo e realce o tempo presente, com o intuito de renovação. A memória é construída subjetivamente, e sempre pode, vez após vez, ser re-significada para um novo começo, gerando uma complexa relação entre lembrança/passado e esquecimento/presente.
Graças ao caráter “reciclador” da memória, sujeitando o passado ao presente, o lenhador que conta a história de Rashomon não mais precisa entender o íntimo de cada pessoa envolvida no estranho caso que o atormentava.

Tudo Sob o Céu

            Em Herói, Zhang Yimou fez seu primeiro trabalho nos filmes de artes marciais. Antes conhecido diretor de dramas, nesse filme usou sua câmera para captar sentimentos pelas cores e movimentos do estilo cinematográfico conhecido por wuxia, caracterizado por mostrar longos tecidos esvoaçantes, heróis épicos de um passado distante e graciosas coreografias de luta que simulam vôo.
            No filme, três habilidosos assassinos do reino de Zhao pretendem matar o rei de Qin, numa época em que o território chinês estava dividido em sete reinos. O protagonista, chamado Sem Nome, relata ao rei como matou os assassinos que atormentavam os pensamentos do soberano, mas este desconfia do que ouve e conta o que acha que realmente aconteceu, acusando o protagonista de complô com seus inimigos.
A tradução de um conceito gerou controvérsia. No texto original há a expressão tianxia, que significa “tudo sob o céu”, representando o domínio sobre o qual o imperador é responsável por manter a ordem. Os homens que pretendem matar o rei de Qin desistem da idéia ao dar-se conta desse ideal de unidade, que só poderia ser alcançado quando aquele poderoso rei tornar-se imperador, conquistando os outros reinos e, com a unificação da nação, trazendo a paz. Tianxia, então, é um fim acima de qualquer sentimento pessoal, e deve ser atingido não importa o meio.
A controvérsia do conceito é que “tudo sob o céu” inclui todo o mundo humano, dando espaço à interpretação de que essa ideologia fundamenta-se na legitimidade na supremacia da China sobre as demais nações. Embora exista um claro nacionalismo na idéia do filme, Zhang Yimou negou motivações políticas específicas para a realização da obra. No ocidente, então, a expressão foi substituída por “nossa terra”.
Sun Tzu disse que o objetivo da guerra é a paz, e Herói segue a mesma linha de pensamento: avançar no caminho das armas até que superamos a própria arma e não mais precisamos dela. Nesse contexto, Herói supostamente justifica o totalitarismo, re-significando a guerra. O que, no entender de Marc Ferro, é muito comum no cinema. A propaganda política está presente nos filmes desde seus primórdios. O cinema, afinal, é uma ferramenta ideológica, “pseudoimagem” de uma realidade indefinida, como reflete Marc Ferro[6].
Herói, um dos filmes mais belos que já tive o prazer de contemplar, conta um mito fundador para colocar a nação no altar do bem maior, acima da verdade e do indivíduo. Mais uma vez, a memória consiste em re-significar.

Memória e Verdade Não Comungam

Ao analisar filmes, ao assistir obras Rashomon e Herói, fica explícito que a ideologia transcende o fato em si mesmo. A verdade temporal escapa, mas deixa um rastro de inegável utilidade à vida humana. Por isso o filme histórico não depende do real, mas sua existência é previamente válida a partir do inevitável discurso.
Sim, inevitável. Pode ser numa simples nuance, quase “invisível”, como indica Ferro, mas não há narrativa sem posicionamento. O clamor de Bloch: “robespierristas, anti-robespierristas, nós vos imploramos: por piedade, dizei-nos simplesmente quem foi Robespierre”[7], é vão, e o autor sabe disso. Associar memória e verdade pura é um paradoxo: a natureza subjetiva da memória vai de encontro à definição absoluta que a palavra verdade requer. Le Goff não hesita em afirmar a influência que “manipulações conscientes ou inconscientes que o interesse, a afetividade, o desejo, a inibição, a censura exercem sobre a memória individual. Do mesmo modo, a memória coletiva foi posta em jogo de forma importante nas lutas pelas forças sociais pelo poder”[8]
É sobre isso que Marc Ferro trata em todo seu livro Cinema e História: o cinema é uma atividade de militantes. É uma arma intelectual, um esforço pedagógico. É glorificação e exaltação através da narrativa alimentada pela memória. “Aquilo que não aconteceu, as crenças, as intenções, o imaginário do homem são tão História quanto a História” – e o cinema traz tudo isto consigo.

Referências

BLOCH, Marc. Apologia da História. Rio de Janeiro:Jorge Zahar Ed., 2001
FERRO, Marc. Cinema e História. São Paulo, Paz e Terra, 2010.
GAIMAN, Neil. Sandman. Fábulas e Reflexões. São Paulo: Editora Conrad, 2006.
LE GOFF, Jacques. História e Memória. Campinas, Editora Unicamp, 2003.
VEYNE, Paul. Como se escreve a história. Brasília: UnB, 1998.



[1] BLOCH, p. 130.
[2] GAIMAN, p. 89.
[3] VEYNE, p. 82.
[4] VEYNE, p. 84.
[5] Na mitologia grega, Clio, musa da História, é filha de Mnemósine, a Memória.
[6] FERRO, p. 31.
[7] BLOCH, p. 126.
[8] LE GOFF, p. 422.

segunda-feira, 27 de dezembro de 2010

Um breve discurso sobre a possível construção de uma identidade: a memória e o tempo em Arca Russa

Por Angélica de Paula Botelho, aluna de graduação da Universidade Federal de Pernambuco

“Claro que o cinema também é devedor da pintura. No cinema, a ilusão óptica da tridimensionalidade sempre desafia o realizador, mas é uma mentira absoluta. Todos sabemos que a fita é plana e que a tela de projeção também. A composição e a perspectiva (ou a falta dela, o uso do plano bidimensional, é muito difícil de lograr no filme) são muito importantes para o cinema e reportam ao influxo da pintura no cinema. É enorme a influência de Rembrandt ou Da Vinci, por exemplo, através da perspectiva... dos planos nos quais o fundo e os personagens estão em íntima relação. De resto, é evidente e indesmentível (sic) que o cinema recolheu elementos de outras artes. Absorveu a música e a fotografia, e naturalmente, muitíssimos aspectos da representação teatral. Por isso é importante que um profissional de cinema seja conhecedor da grande tradição artística. Mas o melhor e mais autêntico contributo do cinema é o tempo, é o passo do tempo. Para penetrar a fundo no enigma que é o homem, também é necessário conhecer o que é a passagem do tempo. Quem sabe gerir o tempo, será um realizador sábio e grande. [...] Desafia-se o tempo, tentando entender, escutar, olhar. Urge estar de acordo (ou em acorde), sintonizar, estar silencioso, ocultar-se. Há que aceitar a situação, lidar com o possível do humano nas circunstâncias da vida. O filme onde levei mais longe este esforço foi a Arca Russa. Foi um intento de negar a ordem do tempo – assumir que o tempo não se pode fraturar, não se pode violentar, montar, fusionar... Mas subsiste o enigma: é difícil saber que atitude tomar face ao tempo. Está para vir o diretor de cinema que consiga solucionar cabalmente este problema. Terá a essência do enigma na sua mão.”[1]



[1] Trecho de entrevista elaborada por Alexandre Nunes de Oliveira, a partir de duas conversas com o realizador Alexander Sokurov nos dias 2 e 3 de Junho de 2005, no Centre de Cultura Contemporánia de Barcelona (CCCB) e na Universitat Pompeu Fabra, também naquela cidade, por ocasião do CICEC – I Congrés Internacional sobre el Cinema Europeu Contemporiani, no qual Sokurov foi um dos homenageados. Disponível em: http://11dejulho.blogspot.com/2006/05/entrevista-com-alexander-sokurov.html

Existem dois tipos de filmes: os que respondem as nossas perguntas e aqueles que são tão abertos e tão completamente cheios de silêncios que não permitem respostas. Particularmente, não existem preferências entre os dois, contanto que possam saciar ora sensivelmente, ora esteticamente, ora psicologicamente etc. Mas, é na completa ausência de respostas, no ritmo lento e pausado de Sokurov que foi possível ter o prazer de ter compartilhadas duas grandes paixões, a Arte e a História.
            A obra de Aleksander Sokurov é conhecida pelo forte apelo histórico, artístico e poético. Em Arca Russa, esses elementos são notórios e fundamentais para constituir aquela que se considera a função essencial de sua obra, um possível ponto de vista sobre a identidade russa, a partir de um personagem vital à sua história, o Hermitage. É nesse espaço reservado à memória da aristocracia que o diretor se empenha em contar 300 anos da Rússia, através das 35 salas do monumento.
            O trecho da entrevista foi escolhido porque reúne os elementos que são essenciais ao objetivo do filme: a pintura, o tempo, a memória, o cinema e a história. Dessa forma, esboça-se um discurso que ajude a refletir o papel que Arca Russa tem enquanto possível metáfora da identidade russa, partindo da relação com o tempo (e, portanto, com a própria história) e a preservação da memória.


O papel da memória e a constituição da identidade nacional

Enquanto responsável pela fuga do esquecimento e, portanto, pela preservação do passado, a memória atua como mediadora dos atributos que formam a história, a exemplo da cultura e do nacionalismo. A cultura, de forma alguma pode ser confundida com o nacionalismo, pois ela transpassa elementos de uma organização estatal e não se limita a fronteiras nacionais (ROCKER, 1998). O melhor exemplo da mediação exercida pela memória acontece no museu, pois esse lugar foi pensado, inicialmente, enquanto veículo institucional vinculado ao Estado e, ao mesmo tempo, o centro da cultura de um país, um local onde a memória é compartilhada, mesmo que por poucos.
O conceito de nacionalismo surge no século XVIII, a partir de idéias relacionadas à Revolução Americana e Francesa. Talvez, até pelo contexto a que esses eventos se referem, o nacionalismo é comumente associado ao sentimento de preservação e pertencimento (PINHEIRO, 2004).

“O nacionalismo tranca as portas, arranca as aldravas e desliga as campainhas, declarando que apenas os que estão dentro têm o direito de aí estar e acomodar-se de vez.” (BAUMAN, 2001)

                Para além de querer se preservar, a identidade é um conceito que independe da idéia de nacionalismo, sendo vital ao ser humano e essencialmente social, pois, é o reconhecer-se no outro. A construção de uma identidade nacional parte do mesmo princípio, e se relaciona com o nacionalismo através do estado nacional institucionalizador cujo nascimento é atribuído ao século XIX - fortalecido pela teoria positivista que coloca a educação, a comunicação e a cultura como mecanismos de controle nacionais, o que aponta a importância do museu nesse contexto.
            Não podemos estabelecer uma relação categórica entre o museu e a criação da identidade nacional, mas esse é um espaço da memória e que contribui para tanto. Mas, o fato de que a memória compartilhada nos museus é a celebrada, a institucional e oficial demonstra que possivelmente possa ter sido pensada a fim de estabelecer uma identidade comum.

Hermitage enquanto espaço de preservação da memória russa

            “Os czares são pensadores. Mas eles também sonharam com a Itália. O Hermitage não foi construído para realizar esses sonhos?” A frase do narrador em Arca Russa ajuda a entender o contexto histórico e o porquê da construção do Hermitage. Em plena época de efervescência das cortes aristocráticas, da nobreza esclarecida e da construção dos grandes monumentos nacionais, como o Louvre e a National Gallery, a Rússia não poderia se colocar à parte desse processo, precisando impor sua própria cultura, mesmo que com patrimônio e arquitetura europeus.
            Comumente, atribui-se a Pedro, o Grande a idealização do museu, mas ele tinha pouco apreço à pintura, somente a poucas telas flamengas e holandesas, seu grande foco eram os objetos, especialmente os de ouro que hoje representam um dos núcleos mais espetaculares do Hermitage. Foi Catarina II que decidiu construir um bom retiro ao lado do Palácio de Inverno, onde pudesse contemplar algumas belas imagens e ficar na companhia de amigos. Auxiliada por bons representantes da cultura européia, a exemplo de Voltaire, Catarina - que não era grande entendedora de pintura - passou a colecionar grandes obras do mercado europeu (FREGOLENT, 2009). Para que a Rússia fosse vista como uma nação que preza a Arte seria necessário ser respeitada por quem a produzia, a Europa, e para tanto, era preciso possuir um bom acervo. A pequena ala desejada por Catarina II se estendeu em grande escala, sendo quintuplicada. O Hermitage agora possui um acervo de aproximadamente três milhões de peças e é dos maiores e mais magníficos museus de todo o mundo.
            Partindo desse contexto, é possível entender a magnitude que o museu passa ao espectador em Arca Russa. Sokurov sabe do apelo visual e histórico que o monumento possui e o eleva à categoria de protagonista. A arca russa do título é o museu, que carrega consigo 300 anos de história, e assim como o país é um lugar em constante transformação e em formação, fechado em si mesmo e em busca de uma identidade própria.
            A cidade de São Petersburgo é um capítulo à parte para compreendermos a dimensão que o Hermitage alcança na cultura russa. Ambos convivem muito bem com a dualidade da identidade nacional em que a tradição oriental não se anula, mas cede lugar ao estilo barroco e neoclássico importados da Europa. Dessa forma, essa cidade parece ser a mais apropriada a abrigar o fascinante e complexo museu.


“Ainda que o patrimônio sirva para unificar a nação, as desigualdades em sua formação e a apropriação exigem estudá-lo também como espaço de luta material e simbólica entre as classes, as etnias e os grupos.” (HABERMAS, 2000)

Então, por mais que o patrimônio pretenda unificar o país e criar uma identidade comum, os conflitos e as desigualdades próprios de casa sociedade vão interferir na memória que será celebrada. O museu reflete um espaço e uma consciência identitária elaborada e feita a partir das instituições que irá produzir uma memória que atenda aos seus interesses. Por todos estes aspectos, o museu, mais do que nunca, é testemunho da História, pois reflete a história celebrada e indiretamente, aquela silenciada, mas que não por isso deixa de estar presente, está oculta. O Hermitage é um testemunho da história russa dos tempos da aristocracia; tudo remete a esse período, desde a arquitetura aos objetos. Entretanto, o silêncio a cerca da Revolução Bolchevique e da traumática ruptura histórica também contam e denunciam o passado. Esse conflito é percebido por Sokurov que, sutilmente, as expõe na tela. O terror e aflição do que está por vir está presente na figura da czarina, Alexandra: “Alguém está nos seguindo. Ouviu tiros?”

Os usos da memória artificial em Arca Russa

            Existem dois tipos de memória, uma que está estritamente relacionada aos sentidos – natural- e outra provocada, exercitada – artificial (YATES, 2007). Já que esta é o tipo mais propício a intervenções externas, teve seu conceito relacionado ao da memorização. Para os antigos retóricos, uma boa forma de exercitá-la é através do encadeamento de imagens. Então, para se criar na memória um espaço propício a determinadas recordações era preciso relacionar imagens e lugares. Percebe-se que a memória artificial necessita de prática, treino e repetitividade, tornando-se uma ferramenta importante da educação (RICOUER, 2008). A memória que se quer criar seja pelo próprio indivíduo ou pelo outro (sociedade) tem que ser desenvolvida pelo aprendizado. Se pretendermos criar uma memória compartilhada, são as técnicas próprias da memória artificial que devem ser utilizadas. As ferramentas fílmicas em Arca Russa para a construção do ponto de vista do diretor são bons exemplos disto.
            Por mais que este recurso pareça ser algo manipulador, a memória é refém do esquecimento, e isso, talvez, justifique o fato. Sua voluptibilidade é tal que precisa ser constantemente reforçada, preservada e ensinada para que não seja esquecida e ajude a constituir uma identidade. Paul Ricoeur estabelece três constantes que fragilizam a identidade e intervêm em sua criação: o tempo, o outro e a herança fundadora. O tempo justifica o recurso à memória enquanto essencial à sua preservação, pois a fluidez e os facilmente manipuláveis conceitos de passado, presente e futuro confundem e precisam estar claros para que não ofereçam uma construção enganosa pela memória, o que interfere na identidade. Sokurov trabalha bem com estas características, utilizando o plano seqüência para demonstrar a fluidez e a não-linearidade do tempo e, ao mesmo tempo, desconstruir a separação entre passado, presente e futuro. O confronto com o outro também é essencial à construção da identidade porque percebemos aquilo que nos é comum e diferente. No filme, o marquês é a representação do outro (no caso a cultura européia) e é pelo confronto com o narrador que a identidade russa é desenhada. O perigo que a alteridade representa (idem, 2008) está quando o percebo como uma ameaça, seja pela rejeição, pela intolerância, não compreensão, ou mesmo as humilhações. O mesmo conflito que constrói a identidade a fragiliza, a exemplo dos diálogos entre o marquês e o narrador que, às vezes, ultrapassam o limite da cordialidade.


Marquês: “Aqui parece o Vaticano, é onde estamos? Estes relevos são pintados, não são? Que naturalismo! Estas decorações não são inspirados nos esboços de Rafael?”
Narrador: “Rafael, sim. Melhor que o Vaticano, isso é São Petersburgo.”
M: “São cópias? Nossas autoridades não confiam nos próprios artistas. Russos são talentosíssimos para copiar!”
N: “Por quê?”
M: “Porque vocês não têm suas próprias idéias. Suas autoridades não querem que vocês a tenham. De fato, eles são tão preguiçosos quanto o resto de vocês.”
N: “Preguiçosos!”

                A última das constantes é a herança fundadora, que é celebrada como acontecimentos fundadores, mas que são atos violentos legitimados, posteriormente, por um Estado institucionalizador. Os mesmo fatos significam glória para uns e humilhação para outros, que armazenam no imaginário coletivo uma falsa concepção de força e superioridade - Alemanha nazista -, ou de humilhação e fraqueza. No filme, a ira de Pedro, o Grande e a nostalgia e apreensão criada pelo que está por vir no chá da família do czar Nicolau II, podem confirmar um exemplo da herança fundadora pela força e humilhação na construção da identidade, que atribui a personalidades e eventos históricos traços caricaturais que caem no senso comum.
            Para construir seu ponto de vista, Sokurov vai além desses elementos e parte para recursos do próprio cinema. A luz e a cor dialogam com o espectador, explicitando a característica que ele quer dar às cenas. O tom rosado no último chá do czar remete à nostalgia e dá leveza e suavidade a um momento tão tenso e caro à história russa.
              Cada sala do museu se apresenta a partir de uma entrada, cores e luzes diferentes. A mise-en-scène constrói um estado onírico (FERREIRA, 2008) que estreita a diferença entre sonho e realidade e remete à fluidez do tempo. As referências sensoriais só confirmam e fortalecem essas características, e insere o espectador dentro da narrativa. Quando o marquês cheira a tela e a cega acompanha os traços da escultura quase somos capazes de acompanhar os mesmos movimentos, tamanha é a capacidade sensorial do filme. A forma como Sokurov utiliza os sons também são recursos que auxiliam nesse sentido. A musicalidade é a presença dos silêncios que ecoam pelo museu, tornando os passos do marquês tão perceptíveis a ponto de incomodar. O longo silêncio só se rompe quando a música se torna vital à cena, como na apresentação teatral ou no grande baile, acompanhado de uma orquestração bem executada e criada especialmente para a película.
            A plasticidade própria das pinturas transforma o filme em um grande quadro, não é à toa que Sokurov é conhecido como cineasta pintor. A perspectiva e a profundidade emprestam ao cinema uma imagem poética que, em vários momentos, se frisadas são telas prontas.
            Por fim, os planos longos e o plano seqüência acentuam os recursos citados e dão a impressão de que o tempo da narrativa é o tempo histórico. Nesses planos são sintetizadas todas as ferramentas que vão construir uma impressão sobre a história, apontando para uma possível identidade centrada na memória artificial, e fundamental ao projeto do diretor, a memória coletiva.

A construção da memória coletiva partindo de um ponto de vista

            Por todos os aspectos vistos anteriormente, fica claro que a memória artificial é vital à construção de uma memória compartilhada. Os elementos técnicos presentes em Arca Russa nos causam uma aproximação com o ponto de vista que o diretor pretende transmitir. A estrutura formada por Sokurov remete ao fato de que a memória coletiva é construída por indivíduos, e não apenas pelos outros e pela sociedade. A memória individual toma posse de si mesma a partir do contato com os outros. As influências e as escolhas técnicas de Sokurov, que constituem sua visão da identidade russa, são reflexos da forma como ele se apropriou dos conceitos que a coletividade deixou à disposição (RICOEUR, 2008).
            Apesar de reconhecermos a importância do indivíduo, muitas vezes, é pelo testemunho dos outros que a memória coletiva é desenvolvida. Os acontecimentos e fatos históricos são reconstruídos para nós, por outros que não somos nós. Em Arca Russa, os elementos que Sokurov seleciona para construir uma memória artificial determinam a forma como absorvemos a narrativa. O Hermitage é um local em que a memória é construída dentro de um único ponto de vista, que pretende ser coletivo. É nesse espaço pessoal entendido pelo diretor que a marca social, própria da coletividade, é encontrada. Os pontos de vista que constituem a memória são determinados por circunstâncias sociais e históricas.     Por isso, é importante entender que a visão que Sokurov tem da representação coletiva do Hermitage não é a única interpretação possível, uma vez que outros indivíduos podem percebê-la de forma diferente, e o próprio Sokurov, em outro momento, pode negar, renovar e reinventar tudo que criou. Em entrevistas prévias à produção do filme, o cineasta reconheceu os desafios e explicou o que o projeto representa, tanto do ponto de vista técnico quanto pessoal.


“(...) estou determinado a realizar esse projeto. Trata-se de uma aventura bastante original, e, se conseguirmos, poderá até ser possível fazer um filme num só dia. É claro que não se trata da maneira usual de fazer filme, mas é tão tentador... como saltar de uma torre de vinte metros, num ato de fé. Você respira fundo e dá um passo em direção ao vazio, acreditando, mas realmente sem saber, que vai sobreviver (...) O que vamos tentar é o equivalente cinemático de subir a grande altitude, em condições adversas e com limitações de tempo, usando como janela uma pequena oportunidade, para entrar numa atmosfera extremamente rarefeita; e precisamos de equipamento de primeira classe para atingirmos nosso pico cinematográfico.” (apud MACHADO, 2002)

            Ao mesmo tempo em que Arca Russa pretende construir uma memória coletiva, também dá ao espectador a possibilidade de criar seu próprio ponto de vista. Os silêncios que permeiam a obra e os segredos não revelados suficientemente auxiliam nesse sentido, o filme não apresenta conclusão e navega pela superfície entre o dizível e o não dizível (KOVCHEG, 2002). Talvez, o maior exemplo desse fato seja a cena do grande baile, em que o tempo todo sentimos a nostalgia que Sokurov empregou na tela, mas que de forma alguma foi além da superficialidade das técnicas fílmicas (mise-en-scène). 

O tempo em Arca Russa

            Conforme já observamos anteriormente, as técnicas selecionadas pelo diretor revelam traços próprios de sua narrativa. Tomando esse ponto como base, a opção pelo plano seqüência, além de ser um desafio, conforme trecho da entrevista, também revela uma preocupação com a questão do tempo, pois, em Arca Russa, a opção de filmagem executada permite um diálogo com o tempo histórico. É pela câmera subjetiva que Sokurov quer desconstruir a concepção não linear de tempo, introduzindo na narrativa aspectos descontínuos. A sensação de estar perdido, a descontinuidade e a possível ruptura histórica na forma como surgem os dois personagens centrais do filme (narrador/marquês) levam a uma interpretação cabível de que se trate de uma mesma pessoa - a própria russa e seus conflitos identitários – e a quebra com a linearidade temporal.
            Outro ponto interessante na abertura do filme é a semelhança entre o discurso do narrador e a primeira estrofe de O Inferno, de Dante Alighieri[1].


“Abro meus olhos e não vejo nada.
Só me lembro que houve um acidente.
Todos correm por segurança o melhor que podem.
Não posso me lembrar o que aconteceu comigo.”

“No meio do caminho desta vida
Desencontrei-me numa selva escura
Que do rumo direito vi perdida

Ah, quanto o descrevê-la é empresa dura,
Esta selvagem, acre e forte
E que o pavor no pensamento apura!
Tal amargor, só há maior na morte”

                Em momento algum fica clara a forma como o narrador chegou até o museu, a que tempo ele pertence, e quem é ele, fatos que se repetem em suas primeiras palavras. É possível que o acidente tenha sido uma ruptura histórica, uma vez que fica claro que o narrador é de um período posterior ao tempo da aristocracia russa. Mas, a verdade é que a confusão inicial, o sentimento de estar perdido, de não se encontrar no seu tempo, de questioná-lo remetem ao sentimento do personagem em A Divina Comédia (HALLIGAN, 2003). Ou mesmo, à percepção particularmente contemporânea de medo pelo inesperado, tão peculiar à história russa que já viveu diversas catástrofes, Chernobyl, Kursk, e a própria Revolução Bolchevique, que além de ter tido conseqüências catastróficas, também foi inesperada. Tempo e história são temáticas recorrentes na obra desse diretor, as técnicas fílmicas empregadas na produção transformam a eternização do passado em possibilidade cinematográfica.
            A pintura é um dos elementos mais pulsantes e presentes na obra. Sokurov faz o cinema em pintura, pois utiliza ferramentas próprias a ela para construir uma plasticidade artística no filme. O cineasta coloca a pintura como fator vital para compreender a história, o tempo e a memória. “Viva e continue vivendo, você sobreviverá a todos eles”, afirma o marquês se referindo a uma tela. Os quadros se tornam testemunhos da história e eternizam o passado; as pessoas, os fatos e as lembranças ali retratados são eternos. Para Sokurov, a pintura é a história e algo a ser questionado e dialogado, como em tantas passagens no filme em que o quadro parece responder questões dos personagens, ou mesma alimentá-las.
                   O saudosismo e a nostalgia presentes no último grande baile são o ápice dos recursos utilizados por Sokurov para reproduzir a sensação de um tempo fluido. O narrador e o marquês se separam – cena que é o auge da sensibilidade fílmica - um segue adiante, e o outro permanece no passado. É como se a Rússia seguisse em frente rumo à construção de sua própria história, independente de paradigmas europeus, mas deixasse ali na Arca tudo que constitui, também, sua identidade. O futuro que se aproxima é inesperado.


Narrador: “Estou triste.Vamos.”
Marquês: “Para onde?”
N: Onde? “Adiante. Adiante...”
M: “O que encontraremos lá?”
N: “Lá? Não sei.”
M: “Ficarei.”
N: “Adeus, Europa.”

            A bela e longa tomada em que os personagens saem do museu prolonga a despedida, Sokurov quer mostrar que a ruptura com o passado é difícil. A leveza e a nostalgia na cena também estão refletidas nos personagens, que apesar de contracenarem de forma teatral em todo filme, reagem viva e emocionalmente ao fim do baile. Ao fim, a câmera se coloca de frente para os atores, conduzindo à saída, acelerando a tomada, percorrendo todo o corredor. A pressa nesse instante em contraste com a lenta saída do salão dão a impressão de que a arca está prestes a partir, porque muito ainda está por vir.


“O mar é tudo ao redor, estamos destinados a velejar para sempre. Viver para sempre.”

           
Referências bibliográficas

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BAUMAN, Zygmunt. A modernidade líquida. Rio de Janeiro: Zahar, 2001.

FERREIRA, Aline Botelho Fonseca. Arca Russa: o uso expressivo da mise-en-scène.  2008. Monografia apresentada na Universidade Federal da Bahia para obtenção do grau de bacharelado em Comunicação Social com habilitação em Jornalismo.

FREGOLENT, Alessandra. Museu Hermitage. Sao Petersburgo. In: Coleção Folha Grandes Museus, v. 16. São Paulo: Folha de S. Paulo, 2009.

HABERMAS, Jürgen. O discurso filosófico da modernidade. São Paulo: Martins Fontes, 2000.

HALLIGAN, Benjamin. The remaining second world: Sokurov and Russian Ark. Inglaterra, 2003. Disponível em: http://archive.sensesofcinema.com/contents/03/25/russian_ark.html Acesso em: 23/10/2010

KOVCHEG, Ruski. Arca Russa. Rússia, 2003. Disponível em: http://www.contracampo.com.br/43/arcarussa.htm Acesso em: 23/10/2010

MACHADO, Álvaro (Org.). Aleksander Sokurov. São Paulo: Cosac & Naify, 2002. 

PINHEIRO, Marcos José. Museu, memória e esquecimento. Rio de Janeiro: E-papers, 2004.

RICOUER, Paul. Memória história esquecimento. Campinas: Unicamp, 2007.

ROCKER, Rudolf. Nationalism and culture. Montreal: Black Rose Books, 1998.

YATES, Frances. A arte da Memória. Campinas: Unicamp, 2007.




[1] Tradução de Jorge Wanderley referente a Clássicos Abril Coleções, v.6, 2010.