domingo, 23 de janeiro de 2011

A profissão das armas: um filme em seu diálogo com a História, a memória e a narrativa

Por Aline De Biase, graduanda da Universidade Federal de Pernambuco

A construção da narrativa histórica sempre foi objeto de inúmeros escritos. A historiografia está sempre buscando novas formas de melhor narrar o que aconteceu. Em um trabalho que associa memória e testemunhos, tanto escritos como orais, o historiador muitas vezes se coloca como um interprete, fazendo da História seu sonho, ou seja, escrevendo a narrativa de acordo com suas convicções.     
            A memória humana, em si, desde a Antiguidade sempre foi objeto de inúmeros tratados. Buscava-se dominar a memória, traze-la para o campo do compreensível, utilizá-la de acordo com interesses.  Nesse sentido, a associação entre História e Cinema traz a legitimidade da memória, já que a obra filmada coloca em imagens, o que fazemos no processo de rememoração. A memória é imagem.
            O papel do filme, assim, é fazer o trabalho da nossa memória, dos nossos pensamentos, colocando em imagens o que faríamos se estivéssemos lendo um livro, por exemplo.
Quintiliano, o professor de retórica do século I, e que contribuiu, pelas suas esposições racionais e críticas,  para os tratados de memorização pelos quais se baseia a Memória Ocidental, ao acreditar que o melhor auxílio para a memória, e consequentemente as imagens, é a sua associação com lugares, coloca: "As imagens são como palavras com as quais marcamos as coisas que devemos aprender, como diz Cícero, 'utilizamos os lugares como a cera e as imagens como as letras.'" [1]. No filme, as imagens são como as letras dos livros, através dasquais chegamos aos lugares a memória.
            O filme "Il Mestiere Delle Armi", com o título em português de "A profissão das Armas" faz a partir das propostas do diretor Ermanno Olmi, a relação entre a narrativa historica, sua ligação direta com a memória, e a narrativa filmica.
            O diretor e roteirista italiano Ermanno Olmi nasceu em Bérgamo em 1931, numa família extremamente católica e humilde. Tendo estudado na Academia de Artes Dramáticas em Milão, Olmi teve suas primeiras experiências com a câmera, fazendo alguns documentários entre 1953 e 1961. Em 1959, foi a estréia do seu longa "O Grande Relógio", que já possuia as principais características que marcariam os filmes de Olmi, e que ganhou os críticos do Festival de Veneza de 1961. O grande sucesso veio em 1978, com "A Árvore dos Tamancos" considerada sua obra-prima e que ganhou a "Palme d'Or", no Festival de Cannes. Esse filme traz a visão poética de Olmi, dialogando realismo e sentimentalismo, quanto ao ambiente rural, ou seja, quanto ao ambiente em que o diretor cresceu e ao qual é ligado.
            Após um período afastado das produções cinematográficas, por causa de uma grave doença, o autor retornou com o filme "Viva a Senhora!" em 1987. É nessa fase, de retorno, que após a produçao de três obras, Olmi lança "A profissão das Armas" em 2001, fazendo sucesso no Festival de Cannes, do mesmo ano. Esse filme, que narra a história verídica de Giovanni De Médici -  rico italiano, capitão dos "condottieri" Bandas Negras e que foi o primeiro soldado da História a ser morto com bala de canhão -  chegou a ser aclamado internacionalmente e ganhou nove "Davi di Donatello", em 2002, nas categorias: "melhor filme", "melhor diretor", "melhor roteiro", "melhor produtor", "melhor fotografia", "melhor edição", "melhor música", "melhor figurino" "melhor cenário".
            Depois de "A profissão das Armas", Olmi produziu 3 filmes, entre 2003 e 2007. A partir do último filme, "Centochiodi", Olmi decidiu se dedicar apenas a produção de documentários. Em 2008, o conjunto de sua obra é reconhecido e ele recebeu o prêmio "Leão de Ouro", no Festival de Veneza.
            A partir da contextualizaçao das obras de Ermanno Olmi, é necessário esclarecer que a escolha de análisar "A profissão das Armas", é extremamente subjetiva, pelo seu caráter significativo de relação entre a História e a narrativa cinematográfica. O filme, em si, faz uma síntese das características do diretor, ao misturar o processo do documentário com o de longa metragem, e ao mostrar seu apelo ao rural, ao catolicismo e seus defensores e a solidão e suas consequências.
            Do ponto de vista técnico e do espectador atento, o filme pode ser dividido, fantasiosamente, em três partes: a primeira, consiste em uma apresentação do filme, pelo narrador tanto do filme como das fontes históricas, Pietro Aretino; a segunda, marca a guerra e as consequencias que levaram à morte de Giovanni; e a terceira parte, consiste na agonia do capitão De Médici, com suas lembranças e com a solidão da morte próxima.
            A primeira parte, pode ser considerada a parte documental do filme. Seguindo o ritmo da principal fonte histórica para a vida de Giovanni de Médici, escrita por Pietro Aretino, o diretor coloca o espectador em contato direto com a fonte. Esse efeito é alcançado, quando Olmi "faz" os principais personagens do acontecimento narrarem a história do Capitão da Banda Negra.
            Os escritos de Pietro Aretino -  poeta, escritor e dramaturgo italiano -  estão dentre as principais fontes sobre a vida de Giovanni De Médici. Por ser amigo íntimo de Capitão da Banda Negra, o escritor teve aproximação aos acontecimentos e sentimentos desse importante soldado. É através das memórias de Aretino, que se narra historiograficamente esse personagem. No filme de Olmi é a partir dele, também, que se narra o filme, dando assim uma maior ênfase na estética documental. Considerando-se que a a memória utiliza-se da imagem para a representação do passado, pode-se pensar que Olmi segue a mesma linha.
            Através de um apelo às memórias de Aretino, como memórias "bem-sucedidas", ou seja de aproximação e fidelidade ao passado, Olmi apresenta sua versão cinematográfica da vida de Giovanni, pretendendo maior aproximação possível com o verídico. Segundo Paul Ricoeur, ao fazer um "Esboço fenomenológico da memória", a preferência pela memória "certa" vem pela "convicção de não termos outro recurso a respeito da referência do passado, senão a própria memória..."[2]
            A segunda parte, tem como plano central, a Guerra Italiana de 1521-1526, com o confronto entre os italianos do Exército Pontífício - formado por tropas mercenárias reunidas em torno de um senhor, os "condottieri" - e os "lansquenês"do Sacro Império Romano-Germânico. Ulizando de tons escuros e muita neblina nas cenas de guerra, Ermanno Olmi, faz não só os embates entre os exércitos, mas também entre táticas de guerrear antigas e novas - ou seja, cavalaria pesada, método medieval contra artilharia, método moderno -, e entre católicos e protestantes.  
            Nessa parte, o canhão é apresentado ao espectador. A cena, sem falas, consiste em um teste que os alemães fazem para se certificar do impacto que a bala do canhão faz à armadura. Simbolizando o impacto do novo no antigo. Ao ver a cena, o espectador sente antecipadamente o fim de Giovanni. Essa sensação é certificada com a cena seguinte, quando Aretino lê para Giovanni a carta de Alfonso D'Este, o Duque de Ferrara, negando o pedido de artilharia feito pelo capitão De Médici. Entretanto, é como se as cenas tivessem sido colocadas em desordem, já que a segunda cena é a causa da primeira. Um recurso utilizado por Olmi para demonstrar sua opinião acerca do fato histórico. Ao negar o pedido de Giovanni, o Duque de Ferrara, que é colocado como traidor, traça o destino do Capitão.
            Nessa segunda parte, apenas as cenas em que se quer mostrar a tranquilidade são colocados tons claros e cores "vibrantes". Como uma espécie de transição, para a "terceira parte", o autor já explora aí as lembranças de Giovanni, sendo esse os únicos recursos que aproxima o espectador aos "sentimentos" do personagem, ou seja, os únicos recursos que afastam do domínio dos escritos de Aretino.
            A última parte, fase mais clara do filme, o diretor mostra os últimos momentos de Giovanni, consequência do tiro de canhão. Nesse momento são exploradas a solidão do capitão, suas mais distintas e variáveis lembranças e sua intimidade. Desde o angustiante momento em que sua perna é retirada até sua morte pelo ferimento, o filme é apresentado sob sua visão, ficando a câmera na maioria das vezes no seu plano.
            Aretino fala, nessa parte, mas muito pouco, o destaque agora é de Giovanni De Médici, e suas lembranças. Sobre essas pode-se citar Paul Ricoeur: "as lembranças podem ser tratadas como formas discretas com margens mais ou menos precisas, que se destacam contra aquilo que poderíamos chamar de um fundo memorial, com o qual podemos nos deleitar em estados de devaneio vago." [3]
            A morte de Giovanni de Médici, e final do filme, representa no contexto dessa obra de Olmi, a morte do antigo, da cavalaria medieval, do mundo católico, e a consequente predominância do moderno e dos conflitos da Reforma Protestante.
             Do ponto de vista de associação entre memória, História e construção da narrativa cinematográfica, o filme de Ermanno Olmi, "A profissão das armas", faz muito bem esse diálogo. Partindo do testemunho de Aretino, ou seja, da fonte histórica, como "estrutura fundamental de transição entre a memória e a história", como colocou Paul Ricoeur, o filme de Olmi consegue reunir a ficção e o real, e as narrativas do filme e da História.







[1]  QUINTILIANO apud YATES, Frances. In: " A Arte da Memória", p. 41.

[2] RICOEUR, Paul. "A Memória, a História, o Esquecimento. Cap. 1.

[3] RICOEUR, Paul. Ibidem

quinta-feira, 6 de janeiro de 2011

A um passo do mundo

Por Marília A. de Albuquerque, graduanda da Universidade Federal de Pernambuco



Histórico. Verdadeiro. Provável. Partimos da concepção geral em que tais termos, se não sinônimos, não só caminham juntos como atribuem legitimidade ao que está dito. Não é novidade que, para que apreenda as impressões ao seu redor, a humanidade tenha aprendido, independentemente, a narrativa. Refiro-me aqui à prática não acadêmica, não literária.  Nada se diz que não seja contado, nada se compreende que não seja recodificado de maneira pessoal, singular e irrepetível e nada se conta que não tenha sido anteriormente narrado. Não obstante, nada se diz em independência do símbolo.

            Como nuance primeira tomemos, então, o largo espaço de criação existente entre histórico e o baseado em fatos reais. É de senso comum a compreensão da autoridade atribuída a uma obra ficcional quando de referência “real”. Observo, pois, a condição impalpável desta distinção estática de forma que, quando não em nível teórico, pouco pode ser dito a respeito dos limites e das características primeiras de cada obra. A necessidade e a própria “verdade” da, ou ao menos a sensação de, verdade está intimamente relacionada a estruturas de construção do discurso, adequação da imagem formada a um ideário a priori ou à confiabilidade em fontes que, não se sabe até que ponto, pode ser discutida.
            História e Cinema não estariam aqui postos lado a lado senão pela relação que estabelecem com o interlocutor. O leitor, do texto, da imagem da narrativa. De uma forma ou de outra, chegamos ao ponto em que se estabelece, na obra, o poder de conjurar sensações, de direcionar a ação. Assim, posta pela oposição real/imaginário ou pelo tangenciamento no sentido de absorção da percepção, de construção de um espaço específico, dotado de molduras, tempo, cores e gestos específicos.
            Não cabe, então, a discussão dos recursos narrativos em si, mas a atenção aos detalhes de transformação. Como várias “sutis peripércias” que promovem as idas e vindas da história de forma que tudo a que se refere acabe, de alguma maneira, estritamente relacionado. Não se trata necessariamente de uma continuidade lógica, mas de uma continuidade plausível, cogniscível. É neste sentido que tanto a história quanto o cinema estão postos como aproximação da vida, em seu sentido mais amplo, de constituição, ou re-constituição de um mundo particular, alheio mas completamente dependente da possibilidade, e mesmo da capacidade, de  identificação daquele que observa. É aí que o leitor se põe como peça fundamental, agente externo e modelador não só daquilo que “vê”, mas do que transmite a esse respeito.
            Temos, então, a história dotada da autoridade, o cinema da completude sensorial. A história que, em última instância, seria o ponto primeiro e último no qual estão inseridos todas as coisas, objetivos, experiências, recordações, fins, tacitamente reconhecida como inerente e inalienável, o reconhecimento de si e o meio pelo qual se dá a identificação com o mundo; o cinema como “como constituição do mundo imaginário que vem transformar-se no lugar por excelência de manifestação dos desejos, sonhos e mitos do homem”.                





I.                    Miscelânea
   
                 
            Quando nos referimos a Everthing is Illuminated (2005), obra de estréia do diretor Liev Schreiber, devemos ter em conta uma intenção reflexiva, de captação do detalhe, da sutileza de cada cenário e cada personagem. Junto com Jonathan, partimos da “idéia de que uma fotografia pode ser encarada como um documento apontado para a pré-existência do elemento que ele denota”. Uma jornada em busca da origem da foto que se explicita em uma jornada em busca de suas próprias verdades.  
            Não poderíamos falar aqui de genialidade ou vanguarda suposta uma precariedade técnica ou a ruptura de montagens clássicas, ou mesmo do cinema-pipoca, visto que a atual abrangência da produção cinematográfica não só permite como regogiza o passeio entre o real e o fantástico, entre o diálogo e o silêncio.          
            O grande trunfo desta obra é a subjetivação da densidade histórica. Em certo sentido, é este, também, um ponto fundamental de análise posto por quando propõe: “como podemos ao perceber uma imagem, lembrarmos de uma coisa distinta dela?” teríamos, assim, a ausência como expectativa da presença, estabelecendo a estimulação e a semelhança como marcos. Essa construção nos levaria, pois, ao objetivo de lembrança - independente do objetivo de rememoração que implicaria um objetivo de retorno transcorrido o tempo, de apelo sensível - no caso, à memória coletiva do Holocausto sem distanciar-nos da possibilidade de identificação individual.     
            Em fato, essa perspectiva, de priorizar a história narrada frente a história que espera-se que seja contada, no caso, a fuga dos judeus à América durante a II Guerra Mundial, não é uma grande inovação. A construção de uma estética que valoriza o acontecimento, focalizando o detalhe e o “comum” como sublime. A subjetivação do ambiente histórico e dos significados a partir do intricado relacionamento entre personagem e o contexto geral da narrativa não seria um aspecto de fato inovador.  Uma oura obra, de caráter e tema completamente diferentes, que poderia ilustrar essa escolha é Desmundo (2003), de Alain Fresnot, em que a sensação da narrativa, a interpretação do espaço cênico, depende integralmente não só do destino da personagem principal, mas de suas aspirações e anseios.   
            O que se tem neste filme, porém, é uma realidade lindamente construída. A continuidade é, talvez, o mais importante dos recursos para que o espectador mantenha-se não só atento, mas envolvido e tocado pela obra. Por continuidade, aqui, não entendo a sobreposição se cenas, mas a profundidade narrativa, o deixar que se perceba que aquele é, em fato, um corte na existência daquele mundo, daquelas pessoas, daquela história.  
            Existe, nessa obra, um cuidado com o detalhe que se mostra no desenvolver do filme. Para que a narrativa se imponha como uma realidade completa, mesmo que à parte, descolada do universo palpável e experienciável, é preciso que se reconheça os laços entre cada personagem e os símbolos de sua própria existência, ao mesmo tempo continuada e instantânea enquanto retratada. É neste sentido que Samy Davis Jr. Jr.  rouba a cena. Cada objeto colecionado por Jonathan, a foto, os mapas,     
            A adaptação de um roteiro é, por muitas vezes, mais complexa do que a criação independente. O roteiro adaptado deve atuar como a concretização enxuta e em imagem daquilo que esteve narrado através de uma construção gradativa de justaposição de termos e cenários que compunham a completude e a essência das relações. Agora, isso se construirá na luz, nos objetos, no andar de cada personagem. Além de rostos, o cinema requer histórias construídas a priori e que sejam gradativamente reveladas, em cada gesto, em cada diálogo. É neste sentido que se estabelece a dificuldade na absorção não só do sentimento da obra como um todo, posto que o olhar alheio, daquele que era, até então, platéia, passa a constituir o olhar interno, através do qual será reeditada a narrativa.
            Chegamos, enfim, ao ponto de encontro, onde devemos ter em conta que instantes sobrepostos em que fotografia, direção, direção de arte e roteiro formam um só conjunto.  Este filme é o reflexo de um roteiro otimamente construído de forma que já nos primeiros instantes não só a obra como um todo mas cada um dos personagens principais mostra  a que veio sem que falte, ao final, a “recompensa” reveladora de uma nova perspectiva. 
            Pela própria escolha da locação, o leste europeu, e a representação já tão acomodada na memória coletiva cinematográfica o filme já assume, idependentemente, substância, drama. O contraste entre os planos estendidos e certo tom fantástico atribuído à história não só pelas luminosas cores da paisagem, mas pelo próprio ritmo dos personagens, seus perfis tipificados e a composição alternada entre densidade histórica e sentimental faz de Uma Vida Iluminada um road movie bastante particular. Uma obra que se completa em seu ciclo que questionamentos e respostas sem deixar de emitir um apelo à consciência e à estética.        
            Everything is Illuminated é, assim, uma divertida obra dramática. Nela, uma tendência à denudação das sensações humanas vê-se acompanhada por uma intenção de sobreposição de impressões, de sensações de  passados. Não se pode deixar de notar a tendência emblemática dos personagens fílmicos na atualidade. Do começo ao fim, os destinos, os diálogos, as perspectivas de todos os personagens estão entrelaçadas. Assim como em qualquer história bem contada, nada acontece por acaso.
            Assim, poderíamos classificá-lo como um trabalho cauteloso de escolha dos símbolos. Enquanto um escritor escolhe gêneros e põe palavras lado a lado de forma construir o ambiente ideal, mesmo que este seja o vazio, é o ritmo e a composição, de planos abertos a primeiro-planos, que atribuirá significado aos objetos, personagens e mesmo paisagens as quais deve-se dedicar a atenção.  A montagem, etapa fundamental da construção não só do temo mas da percepção sensível do filme é especialmente tratada no filme Sal de prata ( 2005), de Carlos Gerbase. Destacamos, aqui, seu aspecto mais sublime, “se o tempo é ‘alguma coisa do movimento’, é preciso uma alma para distinguir os dois instantes, relacioná-los um ao outro como o anterior e o posterior, apreciar sua diferença e medir os intervalos”


             
II.                 do tempo e da luz

            Talvez não se possa estabelecer dois elementos mais ou tão fundamentais tanto à história quanto ao cinema. A primeira questão essencial a que faço referência aqui é própria percepção do tempo, a relação entre o que chamaria de tempo externo e tempo interno. Não apenas no sentido da possibilidade plástica do tempo fílmico em relação à experiência, mas das diferentes dimensões de tempo a que estamos expostos enquanto diretamente dependentes de um “tempo histórico” e ; quanto à história, refiro-me aqui ao sentido de luz apropriado de Uma Vida Iluminada, de reverberação, de continuidade.          Por outro âmbito, a identificação histórica se daria mais por um exercício de memoração, através do qual a busca intencional e racional permite que estabeleçamos as conexões, enquanto que a identificação fílmica acontece pela rememoração espontânea, a associação direta entre mecanismos psicológicos de apropriação da imagem e técnicos de construção do movimento. A imaginação cinematográfica, em associação à construção narrativa em geral, se construiria, assim, no espaço aberto da “presença do ausente”.
            Chegamos, aqui, à observação do cinema como realidade em si, mesmo que enquanto representação. É no âmbito da possibilidade de remomoração que se solidifica  a  dependência imagética. O que a imagem nos propõe é uma experiência real de algo retratado, revivido mesmo que “inaugural”; mantendo a oposição acima proposta de que história e cinema comporiam elementos necessariamente distintos, chegaríamos à discussão entre o “aprendizado” e a assimilação espontânea, atribuindo-se certo juízo de valor que modifica a própria interpretação da lembrança, de forma que “à memória que repete opõe-se a memória que imagina”. 
            Se considerarmos, porém, a impossibilidade de percepção da lembrança pura, posto que o reconhecimento destas se dá já por uma  construção atualizada em sensações e relações, temos, na manipulação da narrativa, pratica própria da produção cinematográfica, um elemento específico de reprodução de um processo psíquico essencial não só na apreensão dos estímulos, mas da re-utilização, ou reconstrução de seus significados a partir da flexibilização proveniente da relação associativa, tanto com novos símbolos como com o presente.    
            É, ainda, da polaridade reflexividade/ mundanidade que podemos extrair uma outra distinção básica na relação entre a “memória fílmica” e a “memória real”. A possibilidade de imanência, no sentido em que não é o filme em si, mas a memória deste projetada pelo expectador que está diretamente sujeita à ressignificação, temos, aí, uma possibilidade constate de re-início, no sentido em que o tempo da obra está de tal forma descolado do tempo externo, da sensação de continuidade, que, passadas grandezas vultuosas ou irrisórias manter-se-á preservada sua intenção inicial e sua constituição fundamental de tempo interno, estando unicamente vulnerável ao julgo daquele que, agora em “tempo morto”, o compôs e, por outro lado, daquele que o assiste.
            Ainda, faz-se notável que não só das impressões reflexivas construímos nossa percepção da realidade. O espaço e os diferentes agentes, humanos ou materiais, que nos cercam compõem em larga escala a identificação. É a atribuição de um conjunto complexo de variantes, demonstrado pela convergência de detalhes e pela coerência na relação entre espaço, tempo e ação, que nos possibilita a sensação de vivência, em última análise, a possibilidade de testemunho; “narrativa e construção operam um mesmo tipo de inscrição, uma na duração, a outra na dureza do material”.       
            A compreensão de que há de fato “um mundo do lado de lá” provém da associação da consciência da manipulação do tempo e da sobreposição narrativa, permitindo que a continuidade narrativa se estabeleça, em certa medida, independente dos recursos de narrativos no sentido textual e cronológico, mas por um processo de harmonização lógica ou sentimental. A possibilidade de metamorfose da câmera, que vai da interpretação do diretor - desconsiderando o fato que em sentido geral seria, toda a obra um reflexo direto desta - à do personagem, à do observador externo, permite, assim, não só a escolha do que se pretende marcar, mas  a absorção do espectador pelo discurso fílmico.
            Temos, pois, a iluminação como recuso fundamental. No caso específico de Uma Vida Iluminada a vivacidade das cores e o jogo de câmera faz com que o ambiente, a paisagem que se segue rumo a “trachambrod” juntamente ao destino personagens, e eles próprios contem histórias independentes que, ali, estão conjuntamente representadas por um “curioso encontro”. É a reverberação do passado que faz com que todas essas histórias comunguem do mesmo espaço e das mesmas circunstâncias, compondo uma só narrativa.    
            A iluminação do presente, da vida, se dá, assim, por uma associação direta entre a busca pela memória, por parte de Jonathan, e o temor do encontro, ou a memória do esquecimento, por parte de Alex.  A desconstrução do passado perspectiva o presente re-estabelecendo as relações e a identificação não só entre os personagens mas entre eles e sua própria memória e consciência de si.
           


III.              O afeto

            Um outro elemento de discussão é fundamental na compreensão não só de um humanamente inerente “hábito mimético”, mas da sobreposição, condicionada ou involuntária,  de imagens que compõem o tanto o ambiente criativo como a relação com o passado; “para evocar o passado em forma de imagens, é preciso poder abstrair-se da ação presente, é preciso atribuir valor ao inútil, é preciso querer sonhar”, compreendemos, aqui, não só o cinema, mas o processo de criação como um todo como um “exercício minemônico”, um artifício da ação conjunta entre  memória afetiva, artificial e coletiva.
            A lembrança encontra-se intimamente relacionado ao ato de permanência, ou, ao menos, à percepção de permanência que atribuímos às coisas e às pessoas. Ao passo que a imaginação, esta em seu sentido criativo, é correntemente associada ao fantástico. Temos, assim, como ponto fundamental, a “percepção do tempo”, de forma que a noção de distância temporal seria inerente à essência da memória, assegurando, assim, a distinção fundamental entre esta e a imaginação.   
            No tocante à obra cinematográfica, cabe observar que a identificação com a platéia acontece especialmente quando ligada à sensibilidade advinda da memória coletiva, por sua vez necessariamente histórica e socialmente construída, de forma que compõe, em última análise, um processo criativo de imagens a partir da construção de significados absorvidas das sensações, boas ou ruins, provenientes da sensibilização sócio-histórica; “da memória compartilhada passa-se gradativamente à memória coletiva e suas comemorações ligadas a lugares consagrados da tradição”. Um exemplo ilustrativo desse processo pode ser visto no filme Escritores da Liberdade (2007), de Richard LaGravenese, quando na luta contra a extensão da segregação étnica e a formação de gangues no interior da sala de aula, a professora investe na informação e sensibilização dos alunos ao Holocausto, ao discurso anti-semita e as conseqüências destes exteriorizadas no período da II Guerra Mundial.
            A noção cronológica e calendárica a que somos induzidos e a própria idéia de apropriação e representação do tempo nos leva a uma percepção impessoal, racional e exterior quando referindo-nos ao tempo histórico. Porém, “não se deveria acreditar que o conhecimento histórico tem por contraponto somente a memória coletiva. Ele deve também conquistar seu espaço contra um fundo especulativo tão rico quanto aquele desdobrado pelas problemáticas do mal do amor e da morte”.
            Assim, não só o esquecimento, mas mesmo a identificação entre memória afetiva e coletiva se dão através de uma interação subjetiva, de forma que a memória depende necessariamente da prática do lembrar-se e a construção do objeto lembrado, de uma construção conjunta e reflexiva entre corpo, espaço, tempo e imagem. 
            Tratamos aqui de um aspecto extremamente reducionista do que a autora, a partir de Bergson, propõe através da distinção entre “recordação laboriosa” e “recordação instantânea” a fim de estabelecer a conexão especifica e profundamente afetiva que se estabelece quando do lidar com obras históricas ou ficcionais.
            É junto à compreensão de acontecimento, rastro e testemunho que chegamos à parte final do filme. O descobrir, por parte de Jonathan do “no caso”, quando se vê, enterolada pela identificação com uma outra colecionadora, de memórias tão mais abrangentes, a inversão do processo de busca, sendo a permanência da memória viva, materializada no objeto, nas alianças, e não a ação ou a vida do próprio personagem o eixo central.
            Aí, não é a legitimação documental ou “credenciamento” que faz com que o testemunho seja assumido como verdade, mas o contato sensível, o “paradigma do registro” deslocado da câmera à coleção, à identificação do “testemunho” material como existência continuada, perene, de seus significantes, mortos, com o relato da ação presente e o objeto da busca.   
            “O acontecimento é aquilo que simplesmente ocorre. Ele tem lugar. Assa e se assa. Advém, sobrevém [...] ou resulta de algo anterior conforme a causalidade necessária ou precede a liberdade, conforme a causalidade espontânea”. É desta sutiliza, entre a busca e o acontecimento que torna-se viva, na obra, a re-memoração da memória não aprendida; a própria memória construída no decorrer da narrativa caminhava em uma outra direção, de forma que se faz possível enxergar um paralelo entre essa e a narrativa histórica “real”; “a história passa, assim, a ilusão de encontrar o real que ela representa. Na verdade, seu discurso não é mais que um discurso performativo adulterado, no qual o constatativo, o descritivo (aparente), na verdade é apenas o significante do ato de fala como ato de autoridade”.        
            Nesta aproximação, nada poderia ser tão expressivo a auto-definição de “coletor”. O ato de preservar símbolos da efemeridade nos traz a uma discussão de significado, tanto no âmbito psicológico quanto  Há uma sutileza que costuma passar despercebida quanto ao hábito de colecionar. O colecionador é, antes de qualquer outra coisa, sensível à fluidez do tempo. O acúmulo material representa a memória exterior que tem de si mesmo, como se dependesse continuadamente de “objetos transicionais” para que reconheça a si como presença real. Indeendente do que coleciona, mas principalmente no caso exposto no filme, fica claramente exposta a intenção de captação da efemeridade, do signo.
            Uma Vida Iluminada é um filme profundamente nostálgico, assim como a prática historiadora. É motivado pela nostalgia de um passado que, em vias de fato, nem lhe pertence que Jonathan Parte para a Ucrânia. O “não saber porquê” que se revestirá em “medo de esquecer” é, também, a necessidade de manter vivo e de re-construir os dignificados através da percepção do passado no presente e deste na própria imagem e construção do primeiro.  
 
IV.             Considerações

            A interpretação da história, assim como da literatura e do cinema, depende diretamente do modo como se atribui a verdade. Temos, necessariamente, que reconhecer que os limites neste ínterim são tênues e, por muitas vezes, demasiadamente subjetivos. Assim, longe de uma análise pormenorizada de aspectos específicos, tanto do discurso fílmico como dessa obra em particular, ou mesmo da narrativa histórica e sua relação com a construção ficcional, pretendi um passeio por entre as impressões extraídas dos textos A Memória, A História, O esquecimento e O Discurso Cinematográfico e, logicamente, do filme Everything is Illuminated.
            O árduo trabalho de definição uma exposição gradual de características estilísticas e descrição de cenas não permitiria uma abordagem mais abrangente em que se fizesse ver não só os aspectos da obra em si mas seu apelo externo, fazendo com que a opção por um contraponto continuado, e quase que aleatório quando tratando-se de adequação à sequência, se apresentasse como melhor alternativa, além de, possivelmente, uma mais agradável leitura.
            As notas e referencias não foram devidamente especificadas pois, infelizmente, não contava com as páginas nem com a referência geral da obra, como edição e data, por exemplo. Esclareço, pois, que as citações foram todas retiradas dos referidos textos, trabalhados em sala de aula e disponibilizados pela professora.
            Assim, ponho, aqui, não só a questão da narrativa como elo fundamental de aproximação entre cinema e história, nem mesmo a possibilidade de construção da (ou de uma) realidade, mas a possibilidade de instrumentalização do cinema como “arma” na reconstrução historiadora e na reinterpretação do discurso histórico em si.     

terça-feira, 4 de janeiro de 2011

Diálogos entre Roma, cidade aberta e alguns conceitos historiográficos

Por Cássio Sales, graduando da Universidade Federal de Pernambuco

Uma breve trajetória do neo-realismo

         Roma, cidade aberta (1945), longa metragem do diretor italiano Roberto Rossellini, é uma das obras mais importantes da tendência cinematográfica que ficou conhecida como “neo-realismo”, intitulada a partir do artigo de 1943 do crítico de cinema Umberto Bárbaro. Resultado de discussões entre intelectuais de esquerdas no início dos anos 1940, muitos dos quais assumidamente comunistas, como De Santis, Mario Alicata e Gianni Puccini, a linguagem neo-realista pode se confundir com um compromisso político e estético que pretendia trazer para a sétima arte a realidade popular e social da Itália em enfrentamento à cultura oficial imposta pelo regime fascista.
            Enquanto Luchino Visconti, umas das figuras pioneiras do até então novíssimo cinema italiano, considera Obsessão (1943), obra de sua autoria, marco inaugural do neo-realismo, apresentando como argumento uma possível influência exercida sobre as produções de De Sica - se antes este diretor havia criado filmes como Teresa Venerdi e Un garibaldino ai convento, depois de Obsessão, realizaria A culpa dos pais, aderindo a uma linguagem completamente distinta da anterior -, Rossellini sugere que a origem da tendência neo-realista não está nem na obra de Visconti, nem em Roma, cidade aberta, mas nos documentários de guerra romanceados, como o seu próprio La nave Bianca - notadamente influenciado pelo documentarista Francesco De Robertis -, e, depois, com os filmes de ficção de mesmo gênero: é o caso de Luciano Serra pilota e L’uomo âalla Croce, nos quais participou como roteirista e realizador, respectivamente. Não é de se espantar que não haja consenso entre as opiniões ligadas a inauguração do neo-realismo, até porque ainda que Obsessão e Roma, cidade aberta provenham de uma mesma orientação ideológica, não foram elas conduzidas a um encaminhamento imediatamente comum. Rossellini parece ser mais objetivo por apresentar expressamente a intenção de enfrentamento entre uma contra-cultura operária e uma cultura dominante, promovendo esse embate sob um contexto mais universal e suscetível que Visconti: a segunda guerra mundial. Obsessão, por outro lado, se encarrega de trazer essa realidade popular em situações mais diluídas no cotidiano, de maneira mais sutil na narrativa, mais propriamente expressa enquanto temática e através dos recursos técnicos de sua linguagem cinematográfica, se afastando de uma forma de embate declarado.
            Chiarini (1974) aponta para uma assustadora efemeridade do neo-realismo enquanto tendência: se havia iniciado em 1945 com Roma, cidade aberta, em 1948 com A terra treme, de Luchino Visconti, alcançava seu auge, já partindo em decadência até finalmente, por volta de 1949, se transformar em mera fórmula de se fazer cinema. Para o também renomado diretor italiano Frederico Fellini - que inclusive participou de Roma, cidade aberta quando ainda era um jovem roteirista -, Roberto Rossellini teria sido o único representante do que se pode chamar neo-realismo italiano: os outros fizeram realismo, verismo ou tentaram traduzir um talento, uma vocação, numa fórmula, numa receita. (FELLINI, 2000, p.76).
Não creio que, sendo o neo-realismo fruto de mentes extraordinariamente originais - mentes que superaram com maestria as limitações do cinema enquanto expressão artística recente, transformando-o em arte de forte identidade -, possa ter sido essa uma tendência que surgiu em efervescência para padecer de maneira abrupta. Como qualquer tendência, há de se perceber no neo-realismo uma continuidade mesmo que ramificada, porque toda originalidade estimula novos gênios a percorrer os caminhos que ela própria cria e esconde. Desconsiderar os estímulos do neo-realismo enquadrando-o num restrito campo criativo que remete a conservação de sua pureza enquanto idealização de uma linguagem e realização primeira, é, pois, desconsiderar a capacidade de mutação de quaisquer tendências inovadoras que, embora possam enfrentar conseqüentes e naturais momentos de reprodução, estão sempre suscetíveis a reinvenções. Cabe aqui referenciar Pasolini em sua obra, particularmente em Teorema. Não é necessário investir busca minuciosa nesta obra prima de 1968 para se perceber semelhanças e desdobramentos com as melhores e mais peculiares das intenções do neo-realismo dos anos 1940: explorando em tom mais poético e acidamente provocativo, apoiando-se numa linguagem mais simbólica e subjetiva, pode-se notar um desenvolvimento de vertentes mutantes do tradicional compromisso social neo-realista no que se refere tanto aos aspectos temáticos, quanto aos diversos aspectos técnicos. Dessa forma, o neo-realismo parece ter tido ou uma vida mais longa do que sugere Chiarini (1974) e, me atrevo a afirmar, do que radicaliza o mestre Fellini, ou, ao menos, ter se imposto claramente como linguagem primeira que estimula características notadamente suas tornando possível o desenvolvimento de linguagens identificáveis como vertentes.
A linguagem neo-realista em Roma, cidade aberta e alguns conceitos de História

Em Roma, cidade aberta, já de imediato é possível reconhecer pontos de contato com a História: realizada recente a queda do fascismo italiano, representa registro fresco do imaginário, das noções e, sobretudo, do sentimento não só de Rossellini enquanto criador artístico, mas enquanto representante e representador de grande parte daqueles que conviveram com a realidade da Segunda Guerra Mundial no contexto da sociedade italiana. Nesse sentido, é como se a obra de Rossellini também contribuísse como vestígio histórico que a um passo se transforma em documento, se aqui considerarmos a concepção do precursor da Escola francesa de Annales, Marc Bloch, que reconstrói a idéia de documento histórico, invertendo as relações atribuídas pela tradição metódico-positivista na historiográfica: não há imperialismo do documento sobre o historiador se sabe o historiador interrogá-lo. Bloch alarga o conceito e a metodologia de se trabalhar com as fontes abrindo, ainda que indiretamente, espaço para o audiovisual enquanto documento histórico.
            Os clássicos autores da historiografia, em particular Luciano de Samósata, Tucídides e Políbio, pregavam que a verdadeira História é aquela que busca a cima de tudo a verdade, construindo-se através de uma narrativa clara e objetiva, imparcial, impávida, de inteligência política e capacidade expressiva. Fácil seria destacar esses três últimos aspectos em Roma, cidade aberta, pois, com locações feitas ainda no período de guerra, torna-se notável a impavidez do diretor e a capacidade expressiva que ganha a obra – ressaltada ainda pelos diversos outros elementos técnicos e estilísticos que utiliza. Já o conteúdo do filme, por si só, traduz a força da inteligência política que contém: torna-se evidente como a luta ideológica contra o sentimento de opressão, criado pelo fascismo, atravessa as diversas camadas da sociedade italiana, indo desde a resistência militar organizada (representada por Manfredi), passando pelo operariado (representado pela família de Pina, mais especialmente por seu noivo Francesco, que se junta a Manfredi), chegando a alguns membros da Igreja católica de tendências progressistas (figurados pelo vigário Don Pietro). Há de se destacar ainda como este ideal libertário atravessa igualmente as faixas etárias, pois em vários momentos do filme nota-se como a consciência política comove até o pequeno Marcello, filho de Pina, que, seja de maneira armada junto aos seus amigos, seja através do cinismo ao lado de Don Pietro – na cena em que fingem socorro ao avô do garoto -, se mostra valente o suficiente para enfrentar o regime.
A respeito das demais relações possíveis de se estabelecer entre narrativa histórica - aqui, a clássica -, e a narrativa do neo-realismo representada por Rossellini, cabe-nos atentar para o uso técnico do instrumento que é por excelência do cineasta, a câmera, que em Roma, cidade aberta parece priorizar o registro de cunho documental das cenas interpretadas, promovendo ora uma imparcialidade do representado pelo olhar do diretor, que incidirá inteiramente na recepção do espectador (uma característica, no entanto e antes de tudo, intencional e bem situada em seus princípios ideológicos), ora comportando-se como elemento de simplicidade estética que enaltece a narrativa em seu conteúdo - elemento também fortalecido pela considerável ausência de efeitos visuais. Sobre esse assunto, comenta Truffaut:
Rohmer disse, certa vez, que a genialidade de Rossellini era a sua falta de imaginação. Significa que ele não gostava de invenções, de artifícios, não gostava de flash-back, não aceitava truques... Ele era contrário à ficção. (Entrevista de Truffaut ao documentário Roberto Rosselini: Frammenti e Battute, de 2000, dirigido por Carlo Lizzani.)
A essa questão da ficção levantada por Truffaut, vale reiterar uma característica do cinema neo-realista utilizada por Rossellini em Roma, cidade aberta: a filmagem em cenários reais. Creio que representa um meio de pretensão para se alcançar e apreender uma realidade não ficcional, dentro do seu limite ficcional, numa tentativa também de se estabelecer uma fácil assimilação e inserção da trama por parte do espectador – uma forma de se aproximar de uma realidade também popular?... Nesse sentido, a nota exibida no início do filme na qual se adverte para o seu caráter fictício, não desconsiderando, contudo, as possibilidades de semelhanças com histórias reais, pode ser facilmente esquecida no decorrer da obra, tanto pelos takes rodados em cenários reais da Segunda Guerra - cenários esses ainda bastante vivos pela realidade não-ficcional -, como pelas próprias histórias que se propõe a contar, histórias que condizem com a realidade daqueles que viveram durante o período dos nove meses de ocupação alemã em Roma. Assim, a narrativa ficcional de Rossellini parece tecer uma linha tênue entre a finalidade de uma obra poética e outra, histórica: discussão clássica que propôs Aristóteles. A obscura - mas intencional -, distinção entre o poder ter acontecido e o que de fato aconteceu, acrescenta a Roma, cidade aberta uma primorosa união entre a narrativa histórica e poética sob um caráter que mais pende para a realidade do que, justamente, para a fantasia: contudo, não é Rossellini um documentarista, mas um romancista.
Como expressão de sua faceta histórica, a obra precursora do neo-realismo italiano cumpre ainda função fundamental para fortalecer uma concepção coerente de História, contribuindo em conteúdo, mais intimamente, para uma história social e política da Itália. Claramente seu foco não é o triunfo do nazismo e fascismo, embora na trama tenham se sobressaído à Resistência: Pina é assassinada por ir atrás de Francesco quando este parte no camburão, capturado pelos soldados; Manfredi não suporta a tortura comandada pelo major Bergmann e Don Pietro é executado após negar informações das organizações clandestinas aos oficiais do exército. A preocupação por uma abordagem que entrelace o político e o popular indica a dupla intenção de Rossellini em enaltecer, com sua narrativa, o outro lado da História, o lado dos vencidos, aquele cujo Angelus Novus de Klee deseja deter-se e sobre o qual destaca Walter Benjamin em seus ensaios Sobre o conceito de História:
A tradição dos oprimidos nos ensina que o ‘estado de exceção’ em que vivemos é na verdade regra geral. Precisamos construir um conceito de história que corresponda a essa verdade. Nesse momento, perceberemos que nossa tarefa é originar um verdadeiro estado de exceção; com isso, nossa posição ficará mais forte na luta contra o fascismo. (BENJAMIN, 1994, p. 226).
Se por um lado a história da resistência organizada já implica uma história a contrapelo, a história da resistência antifascista popular implica ainda mais; E esse é um dos principais pontos temáticos de Roma, cidade aberta, que prioriza a classe do operariado. Os choques entre aqueles que convivem nessa realidade com os membros e com a atmosfera das classes dominantes, tanto da burguesia quanto da classe militar do regime, presentes em diversos momentos do filme, acusam tal preocupação: Laurette, irmã de Pina, aspirante ao meio artístico, sente vergonha e despreza a casa de sua família, onde também mora, um lar do operariado; Manfredi critica a vida e as aspirações burguesas que possuía sua amante, Marina Mari, ambições que levariam o próprio líder da resistência ao seu abismo. Em certa cena, quando conversando com Pina, Manfredi descobre a origem humilde de Marina e imagina como teria sido conhecê-la antes, demonstrando maior interesse.
Essa abordagem de Rossellini representa não só o desejo de retratar um cotidiano cultural da classe operária, assim, isoladamente ou apenas no contexto da guerra, mas pretende atribuí-la uma importância histórica que indiscutivelmente possui, ainda que em muitas vezes seja ela ofuscada por uma historiografia que põe, em primeiro plano, fatos e personagens distantes dessa realidade. É como se Roma, cidade aberta, nesse sentido, também fosse uma expressão brechtiniana:
Quem construiu a Tebas de sete portas?/ Nos livros estão nomes de reis (...) A grande Roma está cheia de arcos do triunfo/ Quem as ergueu?  (...) Tantas histórias/ Tantas questões. (Perguntas de um trabalhador que lê em BRETCH, Bertolt. Poemas. 1913 – 1956. São Paulo : editora 34,2000.)
            A obra que parece mesmo ter inaugurado o neo-realismo italiano, além de ser uma obra prima da cinematografia mundial, alterando para sempre o curso do cinema enquanto arte, consiste ainda numa contribuição que deságua potencialmente no aprimoramento da metodologia da História, seja através da temática que propõe, seja pelos recursos estilísticos e técnicos que sugerem uma narrativa particular e inovadora. Roma, cidade aberta de Roberto Rossellini cumpre com uma função nobre da arte, a de provocar e reivindicar sem, contudo, se afastar de uma linguagem poética que tanto a realidade como a ficção comportam. É certamente uma expressão de ousadia; é revolucionária e, assim sendo, concentra-se como uma manifestação de sentimentos capazes de romper quaisquer fronteiras que possam possuir as criações e atividades da cultura humana.

Referências:
Roma, cidade aberta, 1945, Roberto Rossellini.

Ficha técnica (extraído de http://www.adorocinema.com/filmes/roma-cidade-aberta/ficha-tecnica-e-premios/):
Título original: Roma, Città Aperta
Gênero: Drama
Duração:1 hr 38 min
Ano de lançamento: 1945
Estúdio: Excelsa Film / Minerva Film AB
Distribuidora: Arthur Mayer & Joseph Burstyn Inc.
Direção: Roberto Rossellini
Roteiro: Sergio Amidei e Federico Fellini, baseado em estória de Sergio Amidei e Alberto Consiglio
Produção: Giuseppe Amato, Roberto Rossellini e Ferruccio de Martino
Música: Renzo Rossellini
Fotografia: Ubaldo Arata
Direção de arte: Rosario Megna
Figurino: Rosario Megna
Edição: Eraldo da Roma

Roberto Rosselini: Frammenti e Battute, 2000, Carlo Lizzani.

ALBANESE, Gabriella. A redescoberta dos historiadores antigos no Humanismo e o nascimento da historiografia moderna. Università di Pisa.

ARISTÓTELES. Arte retórica e arte poética/ tradução Antônio Pinto de Carvalho. – Rio de Janeiro : Ediouro, 17ª Edição.

BENJAMIN, Walter. Magia e técnica, arte e política: ensaios sobre literatura e história da cultura / tradução Sergio Paulo Rouanet; - 7. Ed. – São Paulo : Brasiliense, 1994. – (Obras escolhidas ; v.1)

BLOCH, March. Apologia da história, ou, O ofício do historiador/ tradução, André Telles. – Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2001.

HABERMANS, Jurgen. O discurso filosófico da modernidade/ tradução Luiz Sérgio Repa, Rodnei Nascimento. – São Paulo : Martins Fontes, 2000. – (Coleção tópicos)

segunda-feira, 3 de janeiro de 2011

Ensaio sobre a Memória

Por Clarice Soares Braz Mendes, graduanda da Universidade Federal de Pernambuco



Ao delimitar o tema do trabalho como uma análise sobre a produção do conhecimento mnemônico, primeiramente foi mister reconhecer os mecanismos de reprodução e reconhecimento do mundo material,ou mundo real. As reflexões acerca da Mimesis e da Diegesis, trarão a possibilidade de reconhecer as linhas de produção da memória, visto que ao decorrer do texto será possível identificar as diversas formas de se pensar um acontecimento, seja ela numa esfera realística,imaginativa ou simplesmente subjetiva. Anarlisar-se-á também fontes diversas alem dos habituais textos conduzidos em sala de aula, tais como filmes e poema, cujo foco será na hermenêutica mnemônica, nas várias formas de reconhecer um fato, sua veracidade e sua “lealdade” com a realidade, visto que o fato pode ser verdadeiro, porem não passível de uma só visão interpretativa.

A Mimesis seria a representação da natureza, a imitação do que acontece no mundo externo e seria representado de forma realística através de mecanismos, como a arte por exemplo. Tal teoria foi argumentada por Aristóteles em seu discurso sobre a arte poética e a arte retórica. A poesia, seria uma forma de expressão mais verdadeira que a história, pois exprime o universal ao passo que a história exprime o particular. Já para Platão toda criação era uma imitação e a imitação artística seria uma imitação de segunda mão, que a poesia não é real, seria o simulacro com simulacro, vive assim longe do real e por isso não seria útil. Em contraste com a mimesis, a diegesis pode ser entendida como o “contar”, pois não é a representação do real através da arte, mas a encenação, os atores que descrevem eventos e atuam. É na diegesis que o autor leva o espectador ou leitor diretamente a expressar livremente sua criatividade, fantasias e sonhos, independentemente de ter um compromisso com a verdade factual, a verdade é passional, subjetiva. A mimesis na filosofia aristotélica é o fundamento de toda arte, era a mimesis que nos distinguia dos animais, em uma visão de mundo necessariamente dinâmica, sendo o real em síntese, uma replicação do que já está descrito, recontado, expresso na própria linguagem. Falar neste caso da imitação do mundo é aceitar que estamos apenas a repetir uma visão aprendida na linguagem. Não seria uma imitação mas certamente uma versão da realidade que nos é fruto da condição humana reflexiva. A arte por si só é o espelho do indescritível, aquilo que não pode ser tocado pois é único e indizível a ponto de ser completamente compreendido. A arte é portanto a tentativa de suprir o desejo de mostrar-se sensível ao mundo, de mostrar-se ali, ser crente e vivente do mundo em que está, sendo condição necessária para a experiência de vida. A arte aqui descrita é a expressão da vontade de ser, ou seja, é suprimento da necessidade humana advinda da socialização, do convívio coletivo para a demonstração de visões de mundo, de fatos, de realidades particulares que ainda que designadas como particulares tem caráter coletivo por tratar-se de sentimentos plurais.
Em meio a essa discussão sobre formas artísticas de se retratar a realidade, a história encontra-se perdida e em crise. Ao mesmo tempo em que sua técnica positiva é bem definida, a história pós-moderna se adéqua as mais diversas formas de narrativa não ortodoxas na descrição de fatos históricos. O papel do historiador se torna o de facilitador de novas interpretações, um ente passível de imparcialidade e que em seu próprio discurso o faz sem se ater a subterfúgios de um posicionamento livre de opinião. O tempo torna-se maleável e a memória do fato histórico é cada dia interpretada de um ponto de vista diferenciado, exatamente prevalecendo o preceito de interpretação e mimesis da realidade. A técnica artística é aqui empregada por conter a sensibilidade da natureza humana e a discricionariedade dos acontecimentos com a intenção de conter a visão de mundo de algum individuo, seja ele personagem ativo da história ou passivo.
A memória é então compreendida como um espaço não necessariamente temporalmente igual à linearidade atribuída a ele, e com técnicas capazes de extrair a versão dos acontecimentos diante de um fato exposto sem necessariamente estarem atreladas à prejulgamentos advindos do subjetivo particular de cada pessoa.
Acontece que a técnica de mnemônica, ou arte da memória, é atrelada diretamente à retórica, como arte de produzir discursos baseado no reconhecimento do acontecimento em um certo espaço mental.
A melhor descrição do processo de mnemônica é dada por Quintiliano, que estabelece separações de espaço e lugar onde a memória fica guardada(loci). Estabelecer locis é a maneira de se encontrar espaços vazios na memória onde esta pode ser acessada a qualquer momento e criar dispositivos que a tornam inesquecível, porem tendo que ser praticada com freqüência. A técnica consiste em escolher um ambiente, uma sala por exemplo e em cada espaço dessa sala, cada objeto estaria ligada a ele uma memória, um acontecimento, algo que produziria um efeito de lembrança e recordação do que se pôs ali. Seria um depósito mental em ultima análise. Assim,quando a memória fosse requisitada era necessário percorrer o lugar onde ela foi guardada e encontrá-la intacta, guardada.
É a partir desse ponto de argumentação que inicia-se a análise baseada no filme “ Uma Vida Iluminada” de Liev Schreiber, baseado no romance de Jonathan Safran Foer. O filme é antes de tudo uma narrativa baseada na afeição, no sentimento de recordar. O personagem principal é um jovem judeu americano que resolve buscar suas raízes na Ucrânia, onde ele acredita encontrar a mulher que salvou seu avô dos nazistas em 1942. Acontece que o personagem tem a estranha mania de colecionar tudo que acha importante, desde areia, pedra, à dentaduras e broches que acredita ele ter importância de ser recordado. Sendo todas as memórias guardadas em sacolinhas plásticas para serem preservadas.
A narrativa segue em planos de longa duração com a fotografia meticulosamente detalhista procurando trazer o espectador para a realidade temporal do filme. É a sensação de se estar olhando contemplativamente o céu, a estrada ou aos demais personagens. Os outros dois personagens contribuem para o diálogo que cria a atmosfera de fábula, intensificado pelo grande contraste de cores.
O jovem encarregado de ser o “guia” turístico, que sonha em ser o enlatado “american dream” e que chega a ser globalizadamente alienado, traz a linha de humor ao filme. Suas noções erradas sobre a sociedade americana criam um ambiente hilário de deboche com a imposição cultural americana com os demais países, a compreensão de mundo deste personagem é quase ingênua, como em seu comentário sobre os negros americanos “the negroes are such Premium people” em que o personagem principal tenta convencê-lo que não é de bom grado se referir aos negros americanos como “negroes” pois é pejorativo e mesmo assim, vestido de rapper americano ele argumenta que não vê por que eles não gostariam de ser chamados de “negroes”, mostrando ser completamente ausente no que diz respeito ao tocante à história americana.
Outro personagem importante no filme é o avô. É o motorista que ironicamente crê ser cego e por isso tem um cão guia. Ele representa a personificação do ditado popular “o pior cego é aquele que não quer ver”, aquele que deliberadamente nega à memória.
A mania de colecionar do personagem principal caracteriza o mecanismo da mnemônica de forma bem materializada, ou por melhor dizer, externalizada. Ao procurar espaços, caixas e lugares para guardar seus objetos, o personagem está separando “loci” ou seja ambientes de memorização para manter a memória dos objetos intactas, para guarda-las ao seu lado e dessa maneira não se deixar perder um pedaço da história que avalia ele ser importante de ser lembrada. Os locis preservam a ordem dos fatos, as imagens designam os fatos em si e que empregamos os lugares como tábuas de cera em que escrevemos e as imagens como letras escritas neles. A memória seria então maleável como um bloco de cera onde se imprime a realidade e a cera seria a memória, ali preservada. No filme, os locis seriam as caixas, as imagens seriam os objetos guardados, as tábuas são a ativação na memória daquilo que elas representam e as letras escritas são a lembrança a que o objeto se refere. O personagem sente a necessidade de ocupar esses espaços da memória com os objetos relacionados, demonstrando a necessidade de se produzir lembrança, algo a se recordar e ser lembrado.
O choque cultural entre os personagens mostra o quão expostos à interpretações os acontecimentos assim como as pessoas estão. Advindos de culturas e sociedades diferentes, mas ainda sim próximos, ligados pelo mesmo sentimento de memória, manifestado de maneiras diferentes ao longo do convívio do filme. A viagem do filme é uma viagem que vai alem do que é mostrado, o caminho não é ditado pelos personagens mas sim pela procura da memória que estão todos os três buscando mesmo sem saber do que se trata, e ao se deparar com o choque do acontecimento, todos agem de forma distinta.
Interessante ressaltar o personagem do senhor que se diz cego mas não é e que é o motorista durante a viagem. A negação do personagem a ver e enxergar faz uma breve alusão à necessidade de se esquecer, de se deixar esquecer mesmo quando o esquecimento é impossível. A cegueira representa a venda nos olhos, o medo natural de se deparar com aquilo que nos é obrigado a esquecer por questões subjetivas a cada um. Nem toda memória é desejada. Tanto que ao se deparar com a memória viva ( ou a recordação da memória por assim dizer) ele não suporta e põe um fim às suas recordações.
O filme representa a fusão do passado e do presente na produção da memória viva, que acaba por torna-se pleonasmo, pois memória não morre, apenas os indivíduos que a guardam. Memória não é passível de morte pois parte do pressuposto do inesquecível a ponto de ser lembrado, que significa dizer que aquilo que nos prende, faz parte de nós, o acontecimento fica para trás e o resta são as memórias e a livre e espontânea possibilidade de se reviver tudo a novos olhos,novos tempos, por isso não há linearidade temporal na memória, por que não há tempo para memória, há tempo na memória mas não para ela.
Outro filme posto à análise é “Brilho Eterno de uma mente sem lembranças”, do diretor Michael Gondry, escrito por Charlie Kaufman. Que trata de forma bastante peculiar a relação com a memória. A grosso modo, o filme é uma história de amor, onde os personagens desiludidos na monotonia da rotina de seus relacionamentos, decidem apagar as memórias um do outro, em uma empresa chamada de Lacuna Inc; que se responsabiliza por apagar no cérebro todas as memórias referentes àquela pessoa desejada pelo contratante. O interessante é que para se apagar a memória é preciso primeiro localiza-la no cérebro através de objetos que o levem a lembrar da pessoa. Ou seja, fala-se novamente no loci, nos lugares e espaços de armazenamento da memória, mas o interessante é que nessa análise é possível distinguir as memórias naturais das memórias artificiais. A memória natural é aquela inserida em nossas mentes, que nasce ao mesmo tempo que o pensamento, já a memória artificial é aquela reforçada  e consolidada  pelo treinamento.
Ao decorrer do filme o personagem de Jim Carrey se arrepende de apagar a memória de sua namorada e busca subterfúgios para que a lembrança não seja apagada, procurando outros locis que não estejam relacionados à ela, resguardando a memória independente de seu espaço e de seu tempo, é a memória pela memória.
O filme é estruturado numa narrativa caleidoscópica, onde a metalinguagem da memória é predominante, sendo ponto de discussão constante durante a história. Se seria a memória possível de ser esquecida, ou então se é possível fabricar memórias que não estejam predisposta a existir. No caso do filme mesmo após a memória ter sido apagada os personagens ainda têm a sensação de deja-vu, de que algo já estava ali, mesmo tendo sido apagada a memória ela ainda foi possível ser acessada, o espaço sem memória existe, assim como a memória sem espaço também.
E ainda no mérito da questão mnemônica do filme, há uma quebra da temporalidade da memória, é possível se acessar a memória sem tempo, sem referencia temporal, não há a necessidade de ligação da memória com algo em um ambiente temporal, que significa dizer que é lembrar por lembrar, independente de onde esta memória se encontra e de quando ela foi produzida. Fica claro que existem dois tipos de absorção da memória, um pelo corpo que então seria o mais visível e passível de compreensão e o outro que é a idéia, pois todos os animais partilham da noção de memória simples, perceptiva, mas somente os humanos têm a noção e dispõem da sensação e percepção do tempo.
Outro ponto a se levantar é o da memória seletiva. O que fica preso a memória é aquilo que se crer ser importante e necessário de ser lembrado. Tanto que é quase impossível se lembrar de um acontecimento que não chamou atenção ou passou despercebido, pois o cérebro não captou a sensação e a idéia do que foi visto, pois não interpretou aquilo como sendo importante. Por isso a memória é algo peculiarmente particular e subjetivo, é atemporal, funciona como um depósito de dados sem tempo e com espaços produzidos por ela mesma, sendo esses espaços maleáveis e até mesmo apagáveis a depender de onde a memória pretende ser guardada.
A memória é fruto da imaginação. Foi argumentado acima que a memória é uma representação subjetiva da verdade que é plural. Ao se falar que a memória é imaginação e por isso irreal, poderia estar a linha de raciocínio caindo em contradição, porém é preciso primeiro traçar a linha de que, a memória admite diversas formas de memorização, uma delas é pela criação de situações de vivências que passam a ser parte, fruto da memória, porém não verdadeiras no mundo real, mas no mundo ideal, onde a memória transita sem problema algum.
A imaginação é real, só não é verídica no mundo dos fatos. Um verso que pode claramente traduzir esse sentimento de imaginação mnemônica, é a música de Lenine “ O Último Pôr-do-sol”:
“A onda ainda quebra na praia,
Espumas se misturam com o vento.
No dia em que ocê foi embora,
Eu fiquei sentindo saudades do que não foi
Lembrando até do que não vivi
Pensando em nós dois
A lembrança do que não foi vivido poderia gerar o sentimento de que não faz parte da memória, porém é exatamente o mecanismo de lembrança que distingue duas formas da memória; a lembrança e a recordação. A lembrança, como visto no verso acima é o mecanismo mais perto da imaginação que a memória é capaz de produzir, é a junção de real e ideal, sendo uma mistura de verdades. Não faz parte do que não existe, não, de forma alguma, pelo contrário é a união do que existe com as possibilidades que poderiam acontecer, é a imaginação trabalhando sobre circunstancias escolhidas pelo cérebro e pelo sentimento do indivíduo que a produz. É o livre arbítrio do lembrar.
Outro exemplo da memória independente do mundo material, do mundo sensível e que mostra clara a sensação de recordação é o poema de Carlos Drummond de Andrade, que se chama Memória:
“Amar o perdido
deixa confundido,
este coração

Nada pode o olvido
Contra o sem sentido
Apelo do Não

As coisas tangíveis
Tornam-se insensíveis
À palma da mão

Mas as coisas findas,
Muito mais que lindas,
Estas, ficarão”

Os versos acima em negrito, mostram a sectarização entre o mundo material, o mundo dos fatos, o tangível e o mundo daquilo onde as coisas são eternas, onde não há fim, pois também não há começo, não há tempo para a memória. A recordação parte da idéia de reviver algo que está guardado na memória, algo reservado ao próprio olho, a percepção do momento em que foi visto. Não é reviver exatamente como foi, mas é poder dissociar o acontecimento do sentimento ao momento em que ele se tornou real. É a possibilidade de sentir o eterno em sua única visão, e não por isso limitado, é única por que parte do pressuposto que só se olha com os olhos que se tem e por isso é livre.
Sendo assim, a breve análise teve o intuito de delimitar ponto de reflexão acerca da memória e das possibilidades de técnicas mnemônicas, levando em consideração a produção artística acerca do assunto e também literária. Procurando um olhar mais sensível e diversificado da produção historiográfica sobre as questões do quotidiano coletivo e trazendo à discussão sobre a produção da uma história plural, onde as memórias são vistas como fontes historiográficas imparciais e por isso tão dignas de análise como qualquer outra fonte, pois é a partir da memória e da relação do ser com o ambiente que o circunda que é se possível escrever a história de sua sociedade. A memória não é o passado, a memória é o recorrente presente atemporal.