segunda-feira, 3 de janeiro de 2011

Ensaio sobre a Memória

Por Clarice Soares Braz Mendes, graduanda da Universidade Federal de Pernambuco



Ao delimitar o tema do trabalho como uma análise sobre a produção do conhecimento mnemônico, primeiramente foi mister reconhecer os mecanismos de reprodução e reconhecimento do mundo material,ou mundo real. As reflexões acerca da Mimesis e da Diegesis, trarão a possibilidade de reconhecer as linhas de produção da memória, visto que ao decorrer do texto será possível identificar as diversas formas de se pensar um acontecimento, seja ela numa esfera realística,imaginativa ou simplesmente subjetiva. Anarlisar-se-á também fontes diversas alem dos habituais textos conduzidos em sala de aula, tais como filmes e poema, cujo foco será na hermenêutica mnemônica, nas várias formas de reconhecer um fato, sua veracidade e sua “lealdade” com a realidade, visto que o fato pode ser verdadeiro, porem não passível de uma só visão interpretativa.

A Mimesis seria a representação da natureza, a imitação do que acontece no mundo externo e seria representado de forma realística através de mecanismos, como a arte por exemplo. Tal teoria foi argumentada por Aristóteles em seu discurso sobre a arte poética e a arte retórica. A poesia, seria uma forma de expressão mais verdadeira que a história, pois exprime o universal ao passo que a história exprime o particular. Já para Platão toda criação era uma imitação e a imitação artística seria uma imitação de segunda mão, que a poesia não é real, seria o simulacro com simulacro, vive assim longe do real e por isso não seria útil. Em contraste com a mimesis, a diegesis pode ser entendida como o “contar”, pois não é a representação do real através da arte, mas a encenação, os atores que descrevem eventos e atuam. É na diegesis que o autor leva o espectador ou leitor diretamente a expressar livremente sua criatividade, fantasias e sonhos, independentemente de ter um compromisso com a verdade factual, a verdade é passional, subjetiva. A mimesis na filosofia aristotélica é o fundamento de toda arte, era a mimesis que nos distinguia dos animais, em uma visão de mundo necessariamente dinâmica, sendo o real em síntese, uma replicação do que já está descrito, recontado, expresso na própria linguagem. Falar neste caso da imitação do mundo é aceitar que estamos apenas a repetir uma visão aprendida na linguagem. Não seria uma imitação mas certamente uma versão da realidade que nos é fruto da condição humana reflexiva. A arte por si só é o espelho do indescritível, aquilo que não pode ser tocado pois é único e indizível a ponto de ser completamente compreendido. A arte é portanto a tentativa de suprir o desejo de mostrar-se sensível ao mundo, de mostrar-se ali, ser crente e vivente do mundo em que está, sendo condição necessária para a experiência de vida. A arte aqui descrita é a expressão da vontade de ser, ou seja, é suprimento da necessidade humana advinda da socialização, do convívio coletivo para a demonstração de visões de mundo, de fatos, de realidades particulares que ainda que designadas como particulares tem caráter coletivo por tratar-se de sentimentos plurais.
Em meio a essa discussão sobre formas artísticas de se retratar a realidade, a história encontra-se perdida e em crise. Ao mesmo tempo em que sua técnica positiva é bem definida, a história pós-moderna se adéqua as mais diversas formas de narrativa não ortodoxas na descrição de fatos históricos. O papel do historiador se torna o de facilitador de novas interpretações, um ente passível de imparcialidade e que em seu próprio discurso o faz sem se ater a subterfúgios de um posicionamento livre de opinião. O tempo torna-se maleável e a memória do fato histórico é cada dia interpretada de um ponto de vista diferenciado, exatamente prevalecendo o preceito de interpretação e mimesis da realidade. A técnica artística é aqui empregada por conter a sensibilidade da natureza humana e a discricionariedade dos acontecimentos com a intenção de conter a visão de mundo de algum individuo, seja ele personagem ativo da história ou passivo.
A memória é então compreendida como um espaço não necessariamente temporalmente igual à linearidade atribuída a ele, e com técnicas capazes de extrair a versão dos acontecimentos diante de um fato exposto sem necessariamente estarem atreladas à prejulgamentos advindos do subjetivo particular de cada pessoa.
Acontece que a técnica de mnemônica, ou arte da memória, é atrelada diretamente à retórica, como arte de produzir discursos baseado no reconhecimento do acontecimento em um certo espaço mental.
A melhor descrição do processo de mnemônica é dada por Quintiliano, que estabelece separações de espaço e lugar onde a memória fica guardada(loci). Estabelecer locis é a maneira de se encontrar espaços vazios na memória onde esta pode ser acessada a qualquer momento e criar dispositivos que a tornam inesquecível, porem tendo que ser praticada com freqüência. A técnica consiste em escolher um ambiente, uma sala por exemplo e em cada espaço dessa sala, cada objeto estaria ligada a ele uma memória, um acontecimento, algo que produziria um efeito de lembrança e recordação do que se pôs ali. Seria um depósito mental em ultima análise. Assim,quando a memória fosse requisitada era necessário percorrer o lugar onde ela foi guardada e encontrá-la intacta, guardada.
É a partir desse ponto de argumentação que inicia-se a análise baseada no filme “ Uma Vida Iluminada” de Liev Schreiber, baseado no romance de Jonathan Safran Foer. O filme é antes de tudo uma narrativa baseada na afeição, no sentimento de recordar. O personagem principal é um jovem judeu americano que resolve buscar suas raízes na Ucrânia, onde ele acredita encontrar a mulher que salvou seu avô dos nazistas em 1942. Acontece que o personagem tem a estranha mania de colecionar tudo que acha importante, desde areia, pedra, à dentaduras e broches que acredita ele ter importância de ser recordado. Sendo todas as memórias guardadas em sacolinhas plásticas para serem preservadas.
A narrativa segue em planos de longa duração com a fotografia meticulosamente detalhista procurando trazer o espectador para a realidade temporal do filme. É a sensação de se estar olhando contemplativamente o céu, a estrada ou aos demais personagens. Os outros dois personagens contribuem para o diálogo que cria a atmosfera de fábula, intensificado pelo grande contraste de cores.
O jovem encarregado de ser o “guia” turístico, que sonha em ser o enlatado “american dream” e que chega a ser globalizadamente alienado, traz a linha de humor ao filme. Suas noções erradas sobre a sociedade americana criam um ambiente hilário de deboche com a imposição cultural americana com os demais países, a compreensão de mundo deste personagem é quase ingênua, como em seu comentário sobre os negros americanos “the negroes are such Premium people” em que o personagem principal tenta convencê-lo que não é de bom grado se referir aos negros americanos como “negroes” pois é pejorativo e mesmo assim, vestido de rapper americano ele argumenta que não vê por que eles não gostariam de ser chamados de “negroes”, mostrando ser completamente ausente no que diz respeito ao tocante à história americana.
Outro personagem importante no filme é o avô. É o motorista que ironicamente crê ser cego e por isso tem um cão guia. Ele representa a personificação do ditado popular “o pior cego é aquele que não quer ver”, aquele que deliberadamente nega à memória.
A mania de colecionar do personagem principal caracteriza o mecanismo da mnemônica de forma bem materializada, ou por melhor dizer, externalizada. Ao procurar espaços, caixas e lugares para guardar seus objetos, o personagem está separando “loci” ou seja ambientes de memorização para manter a memória dos objetos intactas, para guarda-las ao seu lado e dessa maneira não se deixar perder um pedaço da história que avalia ele ser importante de ser lembrada. Os locis preservam a ordem dos fatos, as imagens designam os fatos em si e que empregamos os lugares como tábuas de cera em que escrevemos e as imagens como letras escritas neles. A memória seria então maleável como um bloco de cera onde se imprime a realidade e a cera seria a memória, ali preservada. No filme, os locis seriam as caixas, as imagens seriam os objetos guardados, as tábuas são a ativação na memória daquilo que elas representam e as letras escritas são a lembrança a que o objeto se refere. O personagem sente a necessidade de ocupar esses espaços da memória com os objetos relacionados, demonstrando a necessidade de se produzir lembrança, algo a se recordar e ser lembrado.
O choque cultural entre os personagens mostra o quão expostos à interpretações os acontecimentos assim como as pessoas estão. Advindos de culturas e sociedades diferentes, mas ainda sim próximos, ligados pelo mesmo sentimento de memória, manifestado de maneiras diferentes ao longo do convívio do filme. A viagem do filme é uma viagem que vai alem do que é mostrado, o caminho não é ditado pelos personagens mas sim pela procura da memória que estão todos os três buscando mesmo sem saber do que se trata, e ao se deparar com o choque do acontecimento, todos agem de forma distinta.
Interessante ressaltar o personagem do senhor que se diz cego mas não é e que é o motorista durante a viagem. A negação do personagem a ver e enxergar faz uma breve alusão à necessidade de se esquecer, de se deixar esquecer mesmo quando o esquecimento é impossível. A cegueira representa a venda nos olhos, o medo natural de se deparar com aquilo que nos é obrigado a esquecer por questões subjetivas a cada um. Nem toda memória é desejada. Tanto que ao se deparar com a memória viva ( ou a recordação da memória por assim dizer) ele não suporta e põe um fim às suas recordações.
O filme representa a fusão do passado e do presente na produção da memória viva, que acaba por torna-se pleonasmo, pois memória não morre, apenas os indivíduos que a guardam. Memória não é passível de morte pois parte do pressuposto do inesquecível a ponto de ser lembrado, que significa dizer que aquilo que nos prende, faz parte de nós, o acontecimento fica para trás e o resta são as memórias e a livre e espontânea possibilidade de se reviver tudo a novos olhos,novos tempos, por isso não há linearidade temporal na memória, por que não há tempo para memória, há tempo na memória mas não para ela.
Outro filme posto à análise é “Brilho Eterno de uma mente sem lembranças”, do diretor Michael Gondry, escrito por Charlie Kaufman. Que trata de forma bastante peculiar a relação com a memória. A grosso modo, o filme é uma história de amor, onde os personagens desiludidos na monotonia da rotina de seus relacionamentos, decidem apagar as memórias um do outro, em uma empresa chamada de Lacuna Inc; que se responsabiliza por apagar no cérebro todas as memórias referentes àquela pessoa desejada pelo contratante. O interessante é que para se apagar a memória é preciso primeiro localiza-la no cérebro através de objetos que o levem a lembrar da pessoa. Ou seja, fala-se novamente no loci, nos lugares e espaços de armazenamento da memória, mas o interessante é que nessa análise é possível distinguir as memórias naturais das memórias artificiais. A memória natural é aquela inserida em nossas mentes, que nasce ao mesmo tempo que o pensamento, já a memória artificial é aquela reforçada  e consolidada  pelo treinamento.
Ao decorrer do filme o personagem de Jim Carrey se arrepende de apagar a memória de sua namorada e busca subterfúgios para que a lembrança não seja apagada, procurando outros locis que não estejam relacionados à ela, resguardando a memória independente de seu espaço e de seu tempo, é a memória pela memória.
O filme é estruturado numa narrativa caleidoscópica, onde a metalinguagem da memória é predominante, sendo ponto de discussão constante durante a história. Se seria a memória possível de ser esquecida, ou então se é possível fabricar memórias que não estejam predisposta a existir. No caso do filme mesmo após a memória ter sido apagada os personagens ainda têm a sensação de deja-vu, de que algo já estava ali, mesmo tendo sido apagada a memória ela ainda foi possível ser acessada, o espaço sem memória existe, assim como a memória sem espaço também.
E ainda no mérito da questão mnemônica do filme, há uma quebra da temporalidade da memória, é possível se acessar a memória sem tempo, sem referencia temporal, não há a necessidade de ligação da memória com algo em um ambiente temporal, que significa dizer que é lembrar por lembrar, independente de onde esta memória se encontra e de quando ela foi produzida. Fica claro que existem dois tipos de absorção da memória, um pelo corpo que então seria o mais visível e passível de compreensão e o outro que é a idéia, pois todos os animais partilham da noção de memória simples, perceptiva, mas somente os humanos têm a noção e dispõem da sensação e percepção do tempo.
Outro ponto a se levantar é o da memória seletiva. O que fica preso a memória é aquilo que se crer ser importante e necessário de ser lembrado. Tanto que é quase impossível se lembrar de um acontecimento que não chamou atenção ou passou despercebido, pois o cérebro não captou a sensação e a idéia do que foi visto, pois não interpretou aquilo como sendo importante. Por isso a memória é algo peculiarmente particular e subjetivo, é atemporal, funciona como um depósito de dados sem tempo e com espaços produzidos por ela mesma, sendo esses espaços maleáveis e até mesmo apagáveis a depender de onde a memória pretende ser guardada.
A memória é fruto da imaginação. Foi argumentado acima que a memória é uma representação subjetiva da verdade que é plural. Ao se falar que a memória é imaginação e por isso irreal, poderia estar a linha de raciocínio caindo em contradição, porém é preciso primeiro traçar a linha de que, a memória admite diversas formas de memorização, uma delas é pela criação de situações de vivências que passam a ser parte, fruto da memória, porém não verdadeiras no mundo real, mas no mundo ideal, onde a memória transita sem problema algum.
A imaginação é real, só não é verídica no mundo dos fatos. Um verso que pode claramente traduzir esse sentimento de imaginação mnemônica, é a música de Lenine “ O Último Pôr-do-sol”:
“A onda ainda quebra na praia,
Espumas se misturam com o vento.
No dia em que ocê foi embora,
Eu fiquei sentindo saudades do que não foi
Lembrando até do que não vivi
Pensando em nós dois
A lembrança do que não foi vivido poderia gerar o sentimento de que não faz parte da memória, porém é exatamente o mecanismo de lembrança que distingue duas formas da memória; a lembrança e a recordação. A lembrança, como visto no verso acima é o mecanismo mais perto da imaginação que a memória é capaz de produzir, é a junção de real e ideal, sendo uma mistura de verdades. Não faz parte do que não existe, não, de forma alguma, pelo contrário é a união do que existe com as possibilidades que poderiam acontecer, é a imaginação trabalhando sobre circunstancias escolhidas pelo cérebro e pelo sentimento do indivíduo que a produz. É o livre arbítrio do lembrar.
Outro exemplo da memória independente do mundo material, do mundo sensível e que mostra clara a sensação de recordação é o poema de Carlos Drummond de Andrade, que se chama Memória:
“Amar o perdido
deixa confundido,
este coração

Nada pode o olvido
Contra o sem sentido
Apelo do Não

As coisas tangíveis
Tornam-se insensíveis
À palma da mão

Mas as coisas findas,
Muito mais que lindas,
Estas, ficarão”

Os versos acima em negrito, mostram a sectarização entre o mundo material, o mundo dos fatos, o tangível e o mundo daquilo onde as coisas são eternas, onde não há fim, pois também não há começo, não há tempo para a memória. A recordação parte da idéia de reviver algo que está guardado na memória, algo reservado ao próprio olho, a percepção do momento em que foi visto. Não é reviver exatamente como foi, mas é poder dissociar o acontecimento do sentimento ao momento em que ele se tornou real. É a possibilidade de sentir o eterno em sua única visão, e não por isso limitado, é única por que parte do pressuposto que só se olha com os olhos que se tem e por isso é livre.
Sendo assim, a breve análise teve o intuito de delimitar ponto de reflexão acerca da memória e das possibilidades de técnicas mnemônicas, levando em consideração a produção artística acerca do assunto e também literária. Procurando um olhar mais sensível e diversificado da produção historiográfica sobre as questões do quotidiano coletivo e trazendo à discussão sobre a produção da uma história plural, onde as memórias são vistas como fontes historiográficas imparciais e por isso tão dignas de análise como qualquer outra fonte, pois é a partir da memória e da relação do ser com o ambiente que o circunda que é se possível escrever a história de sua sociedade. A memória não é o passado, a memória é o recorrente presente atemporal.

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