quinta-feira, 30 de dezembro de 2010

Ensaio acerca do filme "Rashomon", de Akira Kurosawa

Por Analúcia Batista Cavalcante, graduanda de História pela Universidade Federal de Pernambuco



Memória versus Narrativa versus Verdade


Tu, observou Nicetas, és como o cretense mentiroso,confessas que és um mentiroso de marca e pretendes que acreditem em ti.(...)Pela tua confissão, não sabes mais quem és, e talvez porque contaste muitas mentiras, inclusive a ti mesmo.”[1]


No início do século XX a historiografia passou por um momento de transformação, motivado principalmente pelo surgimento do movimento dos Annales na França, liderado por Marc Bloch e Lucien Febvre. A Escola dos Annales  trouxe à tona novos objetos de estudo, novas fontes e novas interpretações para assuntos outrora consagrados pela historiografia tradicional. Através desta abertura as produções cinematográficas começaram a ganhar espaço como objeto de análise do historiador. O cinema enquanto objeto de estudo, conhecimento e informação pode ser analisado, de acordo com Antonio Costa[2], da seguinte forma:
A. A história no cinema: analisa os filmes enquanto fontes de documentação histórica e meios de representação da história com a possibilidade de utilizá-los em conjunto com outras fontes.
B. O cinema na história: analisa a repercussão que os filmes alcançam na sociedade, podendo assumir um papel importante no campo da propaganda política e na difusão de ideologias.

Porém, vale ressaltar que a construção de uma narrativa histórica com base em fontes cinematográficas deve ser feita cautelosamente, uma vez que vários elementos devem ser levados em consideração na análise e interpretação de um filme e não somente a trama em si. Um filme pode ser encarado como uma representação do contexto de sua produção, como um agente da história e não só um produto, como um agente de conscientização e mais ainda, deve-se buscar o que existe de não visível, uma vez que o filme muitas vezes excede o seu próprio conteúdo. De acordo com Marc Ferro[3]Leitura histórica do filme e leitura cinematográfica da história: esses são os dois últimos eixos a serem seguidos para quem se interroga sobre a relação entre cinema e história. A leitura cinematográfica da história coloca para o historiador o problema de sua própria leitura do passado”.
O filme que escolhi para dar vida a este ensaio foi o produzido por Akira Kurosawa na década de 50, Rashomon. Kurosawa chega com este filme ao Ocidente e revela-nos uma nova estrutura narrativa, bastante ambiciosa quando observada atenciosamente. Em Rashomon, as ações são contadas em três tempos distintos – os fatos mais importantes são flashbacks dentro de flashbacks. Há portanto, o presente ( a espera pela chuva passar, com a conversa entre os três homens), o passado recente (o julgamento do bandido acusado pelo crime, em um pátio iluminado pelo sol) e o passado distante (o assassinato na floresta). Apesar de alternar os três tempos, a narrativa jamais fica confusa ou empolada por causa disso. O ritmo é ágil e as cenas, bastante dinâmicas.
Rashomon possui desdobramentos de versões e pontos de vistas sobre um mesmo personagem, de modo que nos faz questionar a verdade em primeiro plano e a imagem como verdade, em segundo plano. Um dos trabalhos árduos do historiador é justamente a busca da verdade através das narrativas, sejam elas escritas ou orais.  Dado o volume significativo e a importância  indiscutível das  obras e dos autores que discorrem sobre o tema história e verdade, não serei tão ousada a ponto de acrescentar uma nova tese acerca de tal tema. Quero apenas afirmar aqui que, o historiador sente dificuldade em obter objetividade.
O historiador é acusado de produzir um conhecimento instável, discutível, com interpretações que se sucedem. Um conhecimento que não é objetivo. Mas o que seria este tal conhecimento objetivo? “Objetivo” nos dicionários, é o que existe fora e independentemente do sujeito. Para Popper, objetivo seria um conhecimento independente de capricho pessoal e justificado, submetido a prova e compreendido por todos; ele estabeleceria regularidades intersubjetivamente comprováveis.[4] Os historiadores então, mentem quando reeescrevem constantemente a história? Kosseleck (1990) formula esse problema assim: a história não pode negar que precisa sustentar  duas exigências que se excluem – produzir enunciados verdadeiros e admitir a relatividade de suas proposições. É uma aporia.
Portanto, todo conhecimento histórico  é ao mesmo tempo uma tomada de posição, um ponto de vista relativo e que deseja ser verdadeiro. Entendido então o conhecimento objetivo, entende-se que é capaz de oferecer a verdade. Mas o que é a verdade? Tema filosófico por excelência. A reflexão sobre a verdade é difícil. O filme de Kurosawa, Rashomon, nos revela exatamente o quanto é difícil de se obter a verdade (dos fatos) – tanto para o juiz, personagem do filme em questão, quanto para  o historiador, diante de seu objeto.Kurosawa, através de Rashomon teve a coragem de mostrar quão difícil, ou mesmo impossível, é encontrar a verdade quando existem conflitos de pontos de vista, ao ponto dos psicólogos passarem a utilizar aquela designação para situações semelhantes. O conhecido “Efeito Rashomon”.
Afinal, a memória é traiçoeira e trabalha através das recordações. A memória não é propriamente um arquivo  no computador, para qual corremos quando desejamos reviver um evento. Quando registramos algo na nossa memória fazemos com que os acontecimentos se “desintegrem” e fiquem “espalhados” pelo cérebro. Depois, ao invocá-los, vamos juntando as peças de forma a reconstruir os acontecimentos. Reconstruir e não reproduzir.
Acontece, no entanto, que no processo de reconstrução são introduzidos elementos provenientes do próprio narrador, fruto das suas vivências, das suas expectativas, dos seus preconceitos, do seu nível cultural, dos seus “esquemas” mentais, ao ponto de omitir parte da informação, que considere irrelevante, dar enfase ao que é mais significativo, racionalizar as partes que não faziam sentido, tudo isto com o objetivo de transformar a história mais compreensível a ele próprio, ao narrador.
Ou seja, a influência da subjetividade na interpretação da sensação (da Realidade) já é assunto bem conhecido e bem estudado pelos clássicos historiadores alemães e franceses. A Realidade (mundo externo) é uma só, e é como ela é, nós é que interpretamos conforme nosso patrimônio cultural (cognitivo, afetivo, volitivo, ético, estético). É essa subjetividade que cabe ao historiador (e neste caso, ao juiz, personagem mediador do filme) avaliar nos depoimentos.
Pesoalmente falando e percebendo com o olhar atual, Rashomon pode provocar alguma estranheza pelo caráter teatral e exagerado das atuações, bem longe do naturalismo que o cinema contemporâneo costuma perseguir.  Como por exemplo, a risada maníaca e a  expressão corporal de Toshiro Mifune, que interpreta o bandido Tajomaru, que se move como um felino. Apesar da sensação de estranhamento, as atuações funcionam muito bem dentro do mundo fabular do filme. O maior destaque é Fumiko Honma, que protagoniza uma seqüência assustadora como uma diabólica médium. A complexidade existencial também se faz presente nos personagens deste filme do Akira. Os três homens que conversam, abrigados da chuva, sob o teto do templo  são um exemplo disto.
De acordo com Deleuze[5], os personagens de Kurosawa são vítimas perpétuas da urgência existencial e, ao mesmo tempo em que eles são vítimas dessas urgências, que são questões de vida ou morte, eles sabem que há uma questão ainda mais urgente, embora não saibam qual. E é isso que os paralisa.
O objetivo de Kurosawa em Rashomon, é reconstituir um fato a partir de memórias alheias.   Esta pauta específica do diretor japonês não fica tão longe do trabalho de um historiador, quando se vê diante de milhares de fontes, constituídas basicamente de memórias, e com o objetivo de criar uma verdade histórica. Após ouvir os relatos de Tajomaru (“Fui eu, Tajomaru, quem matou aquele homem. Foi numa tarde quente, que os vi. De repente, houve aquela brisa fresca. Se não fosse por aquela brisa, eu poderia não ter matado ele”). O homem, que aguarda a chuva sob o templo, antecipa o ponto de vista do diretor através de uma fala, aos 35 minutos do filme, mais ou menos: “homens são somente homens, e por isso mentem. Não podem dizer a verdade, mesmo a si próprios”. Então, preso pela chuva, o homem ouve os relatos para passar o tempo. Entreter é uma das funções de uma narrativa. Aqueles homens reunidos embaixo do templo(Rashomon) têm tempo suficiente para se distraírem, e também de se irritarem com os vários relatos acerca de um mesmo fenômeno (o assassinato de um samurai na floresta).
Há um desapontamento com a natureza humana, mas a crença é retomada num certo movimento de reflexão. Os pensamentos se deslocam e conduzem a uma retomada da fé nos homens no final do filme, mas que se mostra bem diverso no início! O filme de Kurosawa não fica girando apenas em torno de três histórias, acionadas por um observador comprometido com o seu objeto. Rashomon termina sem nenhuma condenação.
Quantas narrativas existem que começam com uma negação, que remete a uma perplexidade, e se encerra com uma afirmação, com uma ação positiva? As versões dos personagens em Rashomon se justificam, não apenas porque são de várias pessoas, mas porque estão associadas a visões diversas, concepções de mundo diversas.



[1]    ECO, Umberto. Baudolino. ed. Record. Rio de Janeiro, São Paulo, 2001. Cap.03, pag. 41.
[2]    COSTA, Antonio. Compreender o Cinema. 1989. p. 27.
[3]                 FERRO, Marc. Coordenadas para uma pesquisa. In: Cinema e História.
                Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1992. p.13-19. [primeira  ed. francesa: 1977; o texto em questão é de 1976]
[4]    Popper, 1993.
[5]    DELEUZE, Gilles. Ato de Criação. Folha de S. Paulo. Suplemento Mais!, 27/06/1999, p.5.

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