quinta-feira, 30 de dezembro de 2010

Ensaio sobre o filme um olhar a cada dia

Por Uziel Pereira Bezerra, graduando em História pela Universidade Federal de Pernambuco


Antes de tudo, já que o ensaio trata de uma epopéia, como Ulisses, ou Odisseu, é importante destacar alguns textos tomados como base para tal. Como Mimesis de Erich Auerbach, As raízes clássicas da historiografia Moderna de Gabriela Albareza, além da Poética de Aristóteles. Mimeis e Poética trata sobre a narrativa. O Auerbach vai dizer categoricamente que o Tácito é historiografia antiga. E vai mais além afirma também que a Bíblia é um material épico, lendário. É preciso então entender a relação entre história e literatura entre os antigos. O que de inicio causa uma agonia, desestabiliza a ótica ocidental porque ao anilisar epopéia, romance e historiografia, se ver que o mesmo texto que aparece como historiografia judaica, por exemplo, aparece como epopéia. Apesar de  se perceber um estanque abrupto no século 1ª d.C, da historiografia bíblica, permanecendo em contrapartida a historiografia grega provou ser tão vital, inclusive influencia os humanistas nos séculos XIV e XV. Com exceção em parte de Maquiavel que escreve sua obra política a partir da observação da experiência real do seu tempo, rompendo com as tradicionais filosofias político-teológicas grega e cristã.
            No entanto no século XVI vai se criar a filosofia da história que tem agora um fim. O que passou-se a chamar de história universal de origem judaico/cristã. Impondo um domínio sobre outras possibilidades e leituras da realidade. Inclusive enquadrando estas possibilidades dentro da sua perspectiva escatologia, a exemplo de Paulo e dos pais da igreja no século I que apontam o cenário político de sua época a partir dos texto vetero-testamentários. Montesquier vai dizer que Deus intervêm na história, entretanto defende veementemente a idéia de progresso.
Bom fazendo estas considerações. Que são apenas alguns toques bem de leves na tela para a pintura. E já que o obetivo é fazer uma relação dos textos com o filme. Vamos ao ele. Estamos falando do filme Um Olhar a Cada Dia de Theodoros Angelopoulos, que nos leva a deleitar e ao mesmo tempo nos fazer pensar.
E já que nos põe a pensar, uma pergunta: O homem evolui no período que separa os dois extremos de um mesmo século? Se a sua resposta é "sim", saiba que Angelopoulos pode achar nem óbvia, nem absoluta, tal asserção. Neste filme, o diretor heleno mostra, à sua moda, que a pureza da alma humana está ficando para trás e que a barbárie, se não cresce, muito menos se extingue ao longo do tempo.
A odisseia de um Ulisses moderno é recontada livremente por um Angelopoulos-Homero que, por meio de um protagonista sem nome - um cineasta grego (o americano Harvey Keitel) de volta à sua região natal -, apresenta seu desencanto na humanidade. O tempo da história narrada é o da época de sua realização, primeira metade da década de 1990, com a Guerra da Bósnia em andamento e lhe servindo parcialmente de cenário. O herói faz sua jornada pelos Bálcãs em busca de três rolos de filme não-revelados dos irmãos Manakis, pioneiros da fotografia e do registro cinematográfico cotidiano em terras argivas e nações arredores. Singrando ele não por águas marítimas jônicas, mas por territórios balcânicos em momento hostil, efetiva uma busca que vai além do objetivo material. Os rolos históricos dos Manakis são somente o McGuffin de uma viagem mais que meramente física, sobretudo lírica.
Esse novo Odisseu vai em busca dos rolos dos filmes, e não em busca de Penélope. Cada lugar que ele chega, encontra e conhece uma pessoa, conta histórias e interage com ela. A narrativa tem um eixo principal e várias histórias ao longo da jornada. se aproxima de mulheres. É meio Ulisses.
A procura pelos registros iniciais do século 20 em forma de filmes documentados por pioneiros transcende o mundo palpável. O que o personagem central quer é captar a essência do olhar do começo daqueles anos - uma visão de mundo certamente bem mais pura que a do final do mesmo período. Depois desses tempos de paz assinalados em fotogramas pelos irmãos documentaristas, a região enfrentou conflitos tempestuosos: as guerras Balcânica, Primeira e Segunda Mundial e bem mais adiante, a da Bósnia. Em força disso, a inocência desaparecida se transforma no pote do final do arco-íris: um tesouro inalcançável. A entropia causada pela ambição e "evolução" humanas irreversivelmente leva embora uma percepção mais doce, pacífica e pastoral do mundo, deixando no lugar desta uma malquerença crescente. A origem desse mal, na visão dos roteiristas (entre os quais o diretor e também o lendário Tonino Guerra, escritor das obras de Antonioni) está na política, no nacionalismo ufanista e na intolerância étnica que assolaram a região. Curiosa e paradoxalmente, o herói vai buscar paz espiritual numa região de conflito armado corrente.
Angelopoulos, com seu cinema contemplativo e de reflexão, define-se bem quanto ao seu modo de filmar. Fazendo uso de uma câmera fluida, por entre travellings, zooms e gruas, ele leva a cabo uma lenta (e necessária, dentro de seus propósitos) narrativa convencional pontuada de planos-sequência engenhosos. Um destaque àquele que introduz em cena o personagem de Keitel, esse Ulisses moderno do filme. Rodado à noite, com passagens variadas de locações e bom número de figurantes, assombra pela perfeição de sua execução e rara beleza. É talvez um dos mais espetaculares que o Cinema testemunhou. Cenas como as duas consecutivas que focalizam refugiados albaneses - ora estáticos (lembrando uma inesquecível cena de O Ano Passado em Marienbad de Resnais), ora em movimento a diferentes tempos -, aquela da jornada da estátua de Lênin (com sua colossal cabeça como a observar a derrocada de seu regime político) e outra que realiza uma variação sobre O Baile de Ettore Scola já carregariam intrinsecamente, cada qual delas, enorme significado dentro dos respectivos contextos apresentados. Mas Angelopoulos não se contenta apenas com isso: reveste essas mesmas passagens com uma poesia visual de tirar o fôlego.
Há tanto apuro imagético, principalmente na primeira metade do filme, que o roteiro parece se tornar secundário. Primeira impressão, pois forma e conteúdo aqui caminham de mãos dadas, infreqüente cônjuge. Theo conhece igualmente o poder da sugestão, e exemplo disso é o uso de um conjunto mais-que-perfeito de contextura, imagem e som para realizar tal efeito, o que se dá na trágica cena da neblina em Sarajevo, quando o espectador é arremessado ao drama então vivenciado pelo protagonista, o qual tem de imaginar a ação onde não a pode ver. Lembro-me da discussão de Auerbach ao acentuar a diferença entre a Odisséia e as narrativas bíblicas, principalmente no Velho testamento, que mesmo, para ele, sendo ambas epopéias, no sentido de narrar a viajem de um personagem, a odisséia é completa em si, ao ser construída com detalhes, mas a Bíblia diferentemente é dramática ao propor a incompletude de seus personagens. O que os torna completos, pois ao leitor fica a tarefa de aprofundar e mergulhar no que Auerbach chama de segundo - plano. Um aspecto psicológico que, sugere o referido autor, causa diferença e impacto no leitor. Angelopoulos, apesar de estar trazendo para nós uma Odisséia moderna usa dessas estratégias para impactar.
Com uma fotografia esplêndida obtida, mormente sob céus plúmbeos, trilha sonora gentil, atuações comoventes de Keitel e Maia Morgenstern (esta a representar todas as mulheres parceiras na tristeza do Novo Ulisses) e tantos outros predicados, esta obra de quase três horas de duração se afirma como uma das peças fundamentais do final do século passado, aquele conturbado período abraçado por quem retratou a procura por um olhar perdido, definitivamente perdido: um olhar tragado pelo caos.

Um olhar a cada dia inicia tímido. Sem muita divulgação.
A começar pelo nome. To vlemma tou Odyssea, o nome grego da película de 1995 de Theo Angelopoulos, traduzido para o inglês, literalmente, como O olhar de Ulisses, ganhou, entre nós, o título algo poético: Um olhar a cada dia. Trata-se, talvez, de uma referência a uma cena específica do filme, como citado de alguma forma antes, em que o personagem principal, um Odisseu moderno, que atravessa os Bálcãs em busca de uma fita de vídeo, fica preso em uma ilha, em que sua memória parece obnubilada pelo encantamento de uma mulher que impede a toda hora sua partida. Se o século XX teve no Ulisses de James Joyce a mais brilhante releitura da Odisséia, a obra de Angelopoulos reatualiza o mito num contexto de guerra que relembra, também, a importância da região na trajetória da civilização ocidental, desde o seu “surgimento” na Grécia, até o período helenístico, na Macedônia de Alexandre.

Para quem viu na remoção da estátua de Lênin, no filme “Adeus, Lênin” uma grande cena, vai se impressionar com a transposição de outra estátua do russo em um barco – releitura magistral da cena em que Ulisses enfrenta o Ciclope.

Há claro, motivos suficientes para se apreciar a película sem necessariamente conhecer todos os episódios do épico grego. O mais relevante deles, talvez, seja a maneira como o diretor é capaz de construir belas cenas num pano de fundo tão tenebroso quanto o da guerra dos Bálcãs. Não será, contudo, um caso ilegítimo de esteticização da miséria ou da guerra. Trata-se, apenas, da habilidade de um diretor em revelar que a vida – não apenas no sentido exaltado por valores morais e estéticos clássicos, senão em sua plenitude de violência, beleza, ódio e amor – segue seu curso mesmo ali onde não conseguimos ver além do pó. Uma visão certamente humanista, mas que se renova quadro a quadro.
Referências
ANGELOPOULOS, Theodoros (diretor). Um Olhar a Cada Dia (To Vlemma Tou Odyssea). Duração: 176 min.

AUERBACH, Erich. Mímesis: a representação da realidade na literatura ocidental. Tradução de George Bernard Sperber. 2ª Ed. São Paulo: Perspectiva, 1976.

CERTEAU, Michel de. A Escrita da História. Rio de Janeiro: Editora Forense Universitária, 2002.

MOMIGLIANO. Arnaldo. As Raízes Clássicas da Historiografia Moderna. São Paulo: EDUSC, 2004.

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