segunda-feira, 27 de dezembro de 2010

Um breve discurso sobre a possível construção de uma identidade: a memória e o tempo em Arca Russa

Por Angélica de Paula Botelho, aluna de graduação da Universidade Federal de Pernambuco

“Claro que o cinema também é devedor da pintura. No cinema, a ilusão óptica da tridimensionalidade sempre desafia o realizador, mas é uma mentira absoluta. Todos sabemos que a fita é plana e que a tela de projeção também. A composição e a perspectiva (ou a falta dela, o uso do plano bidimensional, é muito difícil de lograr no filme) são muito importantes para o cinema e reportam ao influxo da pintura no cinema. É enorme a influência de Rembrandt ou Da Vinci, por exemplo, através da perspectiva... dos planos nos quais o fundo e os personagens estão em íntima relação. De resto, é evidente e indesmentível (sic) que o cinema recolheu elementos de outras artes. Absorveu a música e a fotografia, e naturalmente, muitíssimos aspectos da representação teatral. Por isso é importante que um profissional de cinema seja conhecedor da grande tradição artística. Mas o melhor e mais autêntico contributo do cinema é o tempo, é o passo do tempo. Para penetrar a fundo no enigma que é o homem, também é necessário conhecer o que é a passagem do tempo. Quem sabe gerir o tempo, será um realizador sábio e grande. [...] Desafia-se o tempo, tentando entender, escutar, olhar. Urge estar de acordo (ou em acorde), sintonizar, estar silencioso, ocultar-se. Há que aceitar a situação, lidar com o possível do humano nas circunstâncias da vida. O filme onde levei mais longe este esforço foi a Arca Russa. Foi um intento de negar a ordem do tempo – assumir que o tempo não se pode fraturar, não se pode violentar, montar, fusionar... Mas subsiste o enigma: é difícil saber que atitude tomar face ao tempo. Está para vir o diretor de cinema que consiga solucionar cabalmente este problema. Terá a essência do enigma na sua mão.”[1]



[1] Trecho de entrevista elaborada por Alexandre Nunes de Oliveira, a partir de duas conversas com o realizador Alexander Sokurov nos dias 2 e 3 de Junho de 2005, no Centre de Cultura Contemporánia de Barcelona (CCCB) e na Universitat Pompeu Fabra, também naquela cidade, por ocasião do CICEC – I Congrés Internacional sobre el Cinema Europeu Contemporiani, no qual Sokurov foi um dos homenageados. Disponível em: http://11dejulho.blogspot.com/2006/05/entrevista-com-alexander-sokurov.html

Existem dois tipos de filmes: os que respondem as nossas perguntas e aqueles que são tão abertos e tão completamente cheios de silêncios que não permitem respostas. Particularmente, não existem preferências entre os dois, contanto que possam saciar ora sensivelmente, ora esteticamente, ora psicologicamente etc. Mas, é na completa ausência de respostas, no ritmo lento e pausado de Sokurov que foi possível ter o prazer de ter compartilhadas duas grandes paixões, a Arte e a História.
            A obra de Aleksander Sokurov é conhecida pelo forte apelo histórico, artístico e poético. Em Arca Russa, esses elementos são notórios e fundamentais para constituir aquela que se considera a função essencial de sua obra, um possível ponto de vista sobre a identidade russa, a partir de um personagem vital à sua história, o Hermitage. É nesse espaço reservado à memória da aristocracia que o diretor se empenha em contar 300 anos da Rússia, através das 35 salas do monumento.
            O trecho da entrevista foi escolhido porque reúne os elementos que são essenciais ao objetivo do filme: a pintura, o tempo, a memória, o cinema e a história. Dessa forma, esboça-se um discurso que ajude a refletir o papel que Arca Russa tem enquanto possível metáfora da identidade russa, partindo da relação com o tempo (e, portanto, com a própria história) e a preservação da memória.


O papel da memória e a constituição da identidade nacional

Enquanto responsável pela fuga do esquecimento e, portanto, pela preservação do passado, a memória atua como mediadora dos atributos que formam a história, a exemplo da cultura e do nacionalismo. A cultura, de forma alguma pode ser confundida com o nacionalismo, pois ela transpassa elementos de uma organização estatal e não se limita a fronteiras nacionais (ROCKER, 1998). O melhor exemplo da mediação exercida pela memória acontece no museu, pois esse lugar foi pensado, inicialmente, enquanto veículo institucional vinculado ao Estado e, ao mesmo tempo, o centro da cultura de um país, um local onde a memória é compartilhada, mesmo que por poucos.
O conceito de nacionalismo surge no século XVIII, a partir de idéias relacionadas à Revolução Americana e Francesa. Talvez, até pelo contexto a que esses eventos se referem, o nacionalismo é comumente associado ao sentimento de preservação e pertencimento (PINHEIRO, 2004).

“O nacionalismo tranca as portas, arranca as aldravas e desliga as campainhas, declarando que apenas os que estão dentro têm o direito de aí estar e acomodar-se de vez.” (BAUMAN, 2001)

                Para além de querer se preservar, a identidade é um conceito que independe da idéia de nacionalismo, sendo vital ao ser humano e essencialmente social, pois, é o reconhecer-se no outro. A construção de uma identidade nacional parte do mesmo princípio, e se relaciona com o nacionalismo através do estado nacional institucionalizador cujo nascimento é atribuído ao século XIX - fortalecido pela teoria positivista que coloca a educação, a comunicação e a cultura como mecanismos de controle nacionais, o que aponta a importância do museu nesse contexto.
            Não podemos estabelecer uma relação categórica entre o museu e a criação da identidade nacional, mas esse é um espaço da memória e que contribui para tanto. Mas, o fato de que a memória compartilhada nos museus é a celebrada, a institucional e oficial demonstra que possivelmente possa ter sido pensada a fim de estabelecer uma identidade comum.

Hermitage enquanto espaço de preservação da memória russa

            “Os czares são pensadores. Mas eles também sonharam com a Itália. O Hermitage não foi construído para realizar esses sonhos?” A frase do narrador em Arca Russa ajuda a entender o contexto histórico e o porquê da construção do Hermitage. Em plena época de efervescência das cortes aristocráticas, da nobreza esclarecida e da construção dos grandes monumentos nacionais, como o Louvre e a National Gallery, a Rússia não poderia se colocar à parte desse processo, precisando impor sua própria cultura, mesmo que com patrimônio e arquitetura europeus.
            Comumente, atribui-se a Pedro, o Grande a idealização do museu, mas ele tinha pouco apreço à pintura, somente a poucas telas flamengas e holandesas, seu grande foco eram os objetos, especialmente os de ouro que hoje representam um dos núcleos mais espetaculares do Hermitage. Foi Catarina II que decidiu construir um bom retiro ao lado do Palácio de Inverno, onde pudesse contemplar algumas belas imagens e ficar na companhia de amigos. Auxiliada por bons representantes da cultura européia, a exemplo de Voltaire, Catarina - que não era grande entendedora de pintura - passou a colecionar grandes obras do mercado europeu (FREGOLENT, 2009). Para que a Rússia fosse vista como uma nação que preza a Arte seria necessário ser respeitada por quem a produzia, a Europa, e para tanto, era preciso possuir um bom acervo. A pequena ala desejada por Catarina II se estendeu em grande escala, sendo quintuplicada. O Hermitage agora possui um acervo de aproximadamente três milhões de peças e é dos maiores e mais magníficos museus de todo o mundo.
            Partindo desse contexto, é possível entender a magnitude que o museu passa ao espectador em Arca Russa. Sokurov sabe do apelo visual e histórico que o monumento possui e o eleva à categoria de protagonista. A arca russa do título é o museu, que carrega consigo 300 anos de história, e assim como o país é um lugar em constante transformação e em formação, fechado em si mesmo e em busca de uma identidade própria.
            A cidade de São Petersburgo é um capítulo à parte para compreendermos a dimensão que o Hermitage alcança na cultura russa. Ambos convivem muito bem com a dualidade da identidade nacional em que a tradição oriental não se anula, mas cede lugar ao estilo barroco e neoclássico importados da Europa. Dessa forma, essa cidade parece ser a mais apropriada a abrigar o fascinante e complexo museu.


“Ainda que o patrimônio sirva para unificar a nação, as desigualdades em sua formação e a apropriação exigem estudá-lo também como espaço de luta material e simbólica entre as classes, as etnias e os grupos.” (HABERMAS, 2000)

Então, por mais que o patrimônio pretenda unificar o país e criar uma identidade comum, os conflitos e as desigualdades próprios de casa sociedade vão interferir na memória que será celebrada. O museu reflete um espaço e uma consciência identitária elaborada e feita a partir das instituições que irá produzir uma memória que atenda aos seus interesses. Por todos estes aspectos, o museu, mais do que nunca, é testemunho da História, pois reflete a história celebrada e indiretamente, aquela silenciada, mas que não por isso deixa de estar presente, está oculta. O Hermitage é um testemunho da história russa dos tempos da aristocracia; tudo remete a esse período, desde a arquitetura aos objetos. Entretanto, o silêncio a cerca da Revolução Bolchevique e da traumática ruptura histórica também contam e denunciam o passado. Esse conflito é percebido por Sokurov que, sutilmente, as expõe na tela. O terror e aflição do que está por vir está presente na figura da czarina, Alexandra: “Alguém está nos seguindo. Ouviu tiros?”

Os usos da memória artificial em Arca Russa

            Existem dois tipos de memória, uma que está estritamente relacionada aos sentidos – natural- e outra provocada, exercitada – artificial (YATES, 2007). Já que esta é o tipo mais propício a intervenções externas, teve seu conceito relacionado ao da memorização. Para os antigos retóricos, uma boa forma de exercitá-la é através do encadeamento de imagens. Então, para se criar na memória um espaço propício a determinadas recordações era preciso relacionar imagens e lugares. Percebe-se que a memória artificial necessita de prática, treino e repetitividade, tornando-se uma ferramenta importante da educação (RICOUER, 2008). A memória que se quer criar seja pelo próprio indivíduo ou pelo outro (sociedade) tem que ser desenvolvida pelo aprendizado. Se pretendermos criar uma memória compartilhada, são as técnicas próprias da memória artificial que devem ser utilizadas. As ferramentas fílmicas em Arca Russa para a construção do ponto de vista do diretor são bons exemplos disto.
            Por mais que este recurso pareça ser algo manipulador, a memória é refém do esquecimento, e isso, talvez, justifique o fato. Sua voluptibilidade é tal que precisa ser constantemente reforçada, preservada e ensinada para que não seja esquecida e ajude a constituir uma identidade. Paul Ricoeur estabelece três constantes que fragilizam a identidade e intervêm em sua criação: o tempo, o outro e a herança fundadora. O tempo justifica o recurso à memória enquanto essencial à sua preservação, pois a fluidez e os facilmente manipuláveis conceitos de passado, presente e futuro confundem e precisam estar claros para que não ofereçam uma construção enganosa pela memória, o que interfere na identidade. Sokurov trabalha bem com estas características, utilizando o plano seqüência para demonstrar a fluidez e a não-linearidade do tempo e, ao mesmo tempo, desconstruir a separação entre passado, presente e futuro. O confronto com o outro também é essencial à construção da identidade porque percebemos aquilo que nos é comum e diferente. No filme, o marquês é a representação do outro (no caso a cultura européia) e é pelo confronto com o narrador que a identidade russa é desenhada. O perigo que a alteridade representa (idem, 2008) está quando o percebo como uma ameaça, seja pela rejeição, pela intolerância, não compreensão, ou mesmo as humilhações. O mesmo conflito que constrói a identidade a fragiliza, a exemplo dos diálogos entre o marquês e o narrador que, às vezes, ultrapassam o limite da cordialidade.


Marquês: “Aqui parece o Vaticano, é onde estamos? Estes relevos são pintados, não são? Que naturalismo! Estas decorações não são inspirados nos esboços de Rafael?”
Narrador: “Rafael, sim. Melhor que o Vaticano, isso é São Petersburgo.”
M: “São cópias? Nossas autoridades não confiam nos próprios artistas. Russos são talentosíssimos para copiar!”
N: “Por quê?”
M: “Porque vocês não têm suas próprias idéias. Suas autoridades não querem que vocês a tenham. De fato, eles são tão preguiçosos quanto o resto de vocês.”
N: “Preguiçosos!”

                A última das constantes é a herança fundadora, que é celebrada como acontecimentos fundadores, mas que são atos violentos legitimados, posteriormente, por um Estado institucionalizador. Os mesmo fatos significam glória para uns e humilhação para outros, que armazenam no imaginário coletivo uma falsa concepção de força e superioridade - Alemanha nazista -, ou de humilhação e fraqueza. No filme, a ira de Pedro, o Grande e a nostalgia e apreensão criada pelo que está por vir no chá da família do czar Nicolau II, podem confirmar um exemplo da herança fundadora pela força e humilhação na construção da identidade, que atribui a personalidades e eventos históricos traços caricaturais que caem no senso comum.
            Para construir seu ponto de vista, Sokurov vai além desses elementos e parte para recursos do próprio cinema. A luz e a cor dialogam com o espectador, explicitando a característica que ele quer dar às cenas. O tom rosado no último chá do czar remete à nostalgia e dá leveza e suavidade a um momento tão tenso e caro à história russa.
              Cada sala do museu se apresenta a partir de uma entrada, cores e luzes diferentes. A mise-en-scène constrói um estado onírico (FERREIRA, 2008) que estreita a diferença entre sonho e realidade e remete à fluidez do tempo. As referências sensoriais só confirmam e fortalecem essas características, e insere o espectador dentro da narrativa. Quando o marquês cheira a tela e a cega acompanha os traços da escultura quase somos capazes de acompanhar os mesmos movimentos, tamanha é a capacidade sensorial do filme. A forma como Sokurov utiliza os sons também são recursos que auxiliam nesse sentido. A musicalidade é a presença dos silêncios que ecoam pelo museu, tornando os passos do marquês tão perceptíveis a ponto de incomodar. O longo silêncio só se rompe quando a música se torna vital à cena, como na apresentação teatral ou no grande baile, acompanhado de uma orquestração bem executada e criada especialmente para a película.
            A plasticidade própria das pinturas transforma o filme em um grande quadro, não é à toa que Sokurov é conhecido como cineasta pintor. A perspectiva e a profundidade emprestam ao cinema uma imagem poética que, em vários momentos, se frisadas são telas prontas.
            Por fim, os planos longos e o plano seqüência acentuam os recursos citados e dão a impressão de que o tempo da narrativa é o tempo histórico. Nesses planos são sintetizadas todas as ferramentas que vão construir uma impressão sobre a história, apontando para uma possível identidade centrada na memória artificial, e fundamental ao projeto do diretor, a memória coletiva.

A construção da memória coletiva partindo de um ponto de vista

            Por todos os aspectos vistos anteriormente, fica claro que a memória artificial é vital à construção de uma memória compartilhada. Os elementos técnicos presentes em Arca Russa nos causam uma aproximação com o ponto de vista que o diretor pretende transmitir. A estrutura formada por Sokurov remete ao fato de que a memória coletiva é construída por indivíduos, e não apenas pelos outros e pela sociedade. A memória individual toma posse de si mesma a partir do contato com os outros. As influências e as escolhas técnicas de Sokurov, que constituem sua visão da identidade russa, são reflexos da forma como ele se apropriou dos conceitos que a coletividade deixou à disposição (RICOEUR, 2008).
            Apesar de reconhecermos a importância do indivíduo, muitas vezes, é pelo testemunho dos outros que a memória coletiva é desenvolvida. Os acontecimentos e fatos históricos são reconstruídos para nós, por outros que não somos nós. Em Arca Russa, os elementos que Sokurov seleciona para construir uma memória artificial determinam a forma como absorvemos a narrativa. O Hermitage é um local em que a memória é construída dentro de um único ponto de vista, que pretende ser coletivo. É nesse espaço pessoal entendido pelo diretor que a marca social, própria da coletividade, é encontrada. Os pontos de vista que constituem a memória são determinados por circunstâncias sociais e históricas.     Por isso, é importante entender que a visão que Sokurov tem da representação coletiva do Hermitage não é a única interpretação possível, uma vez que outros indivíduos podem percebê-la de forma diferente, e o próprio Sokurov, em outro momento, pode negar, renovar e reinventar tudo que criou. Em entrevistas prévias à produção do filme, o cineasta reconheceu os desafios e explicou o que o projeto representa, tanto do ponto de vista técnico quanto pessoal.


“(...) estou determinado a realizar esse projeto. Trata-se de uma aventura bastante original, e, se conseguirmos, poderá até ser possível fazer um filme num só dia. É claro que não se trata da maneira usual de fazer filme, mas é tão tentador... como saltar de uma torre de vinte metros, num ato de fé. Você respira fundo e dá um passo em direção ao vazio, acreditando, mas realmente sem saber, que vai sobreviver (...) O que vamos tentar é o equivalente cinemático de subir a grande altitude, em condições adversas e com limitações de tempo, usando como janela uma pequena oportunidade, para entrar numa atmosfera extremamente rarefeita; e precisamos de equipamento de primeira classe para atingirmos nosso pico cinematográfico.” (apud MACHADO, 2002)

            Ao mesmo tempo em que Arca Russa pretende construir uma memória coletiva, também dá ao espectador a possibilidade de criar seu próprio ponto de vista. Os silêncios que permeiam a obra e os segredos não revelados suficientemente auxiliam nesse sentido, o filme não apresenta conclusão e navega pela superfície entre o dizível e o não dizível (KOVCHEG, 2002). Talvez, o maior exemplo desse fato seja a cena do grande baile, em que o tempo todo sentimos a nostalgia que Sokurov empregou na tela, mas que de forma alguma foi além da superficialidade das técnicas fílmicas (mise-en-scène). 

O tempo em Arca Russa

            Conforme já observamos anteriormente, as técnicas selecionadas pelo diretor revelam traços próprios de sua narrativa. Tomando esse ponto como base, a opção pelo plano seqüência, além de ser um desafio, conforme trecho da entrevista, também revela uma preocupação com a questão do tempo, pois, em Arca Russa, a opção de filmagem executada permite um diálogo com o tempo histórico. É pela câmera subjetiva que Sokurov quer desconstruir a concepção não linear de tempo, introduzindo na narrativa aspectos descontínuos. A sensação de estar perdido, a descontinuidade e a possível ruptura histórica na forma como surgem os dois personagens centrais do filme (narrador/marquês) levam a uma interpretação cabível de que se trate de uma mesma pessoa - a própria russa e seus conflitos identitários – e a quebra com a linearidade temporal.
            Outro ponto interessante na abertura do filme é a semelhança entre o discurso do narrador e a primeira estrofe de O Inferno, de Dante Alighieri[1].


“Abro meus olhos e não vejo nada.
Só me lembro que houve um acidente.
Todos correm por segurança o melhor que podem.
Não posso me lembrar o que aconteceu comigo.”

“No meio do caminho desta vida
Desencontrei-me numa selva escura
Que do rumo direito vi perdida

Ah, quanto o descrevê-la é empresa dura,
Esta selvagem, acre e forte
E que o pavor no pensamento apura!
Tal amargor, só há maior na morte”

                Em momento algum fica clara a forma como o narrador chegou até o museu, a que tempo ele pertence, e quem é ele, fatos que se repetem em suas primeiras palavras. É possível que o acidente tenha sido uma ruptura histórica, uma vez que fica claro que o narrador é de um período posterior ao tempo da aristocracia russa. Mas, a verdade é que a confusão inicial, o sentimento de estar perdido, de não se encontrar no seu tempo, de questioná-lo remetem ao sentimento do personagem em A Divina Comédia (HALLIGAN, 2003). Ou mesmo, à percepção particularmente contemporânea de medo pelo inesperado, tão peculiar à história russa que já viveu diversas catástrofes, Chernobyl, Kursk, e a própria Revolução Bolchevique, que além de ter tido conseqüências catastróficas, também foi inesperada. Tempo e história são temáticas recorrentes na obra desse diretor, as técnicas fílmicas empregadas na produção transformam a eternização do passado em possibilidade cinematográfica.
            A pintura é um dos elementos mais pulsantes e presentes na obra. Sokurov faz o cinema em pintura, pois utiliza ferramentas próprias a ela para construir uma plasticidade artística no filme. O cineasta coloca a pintura como fator vital para compreender a história, o tempo e a memória. “Viva e continue vivendo, você sobreviverá a todos eles”, afirma o marquês se referindo a uma tela. Os quadros se tornam testemunhos da história e eternizam o passado; as pessoas, os fatos e as lembranças ali retratados são eternos. Para Sokurov, a pintura é a história e algo a ser questionado e dialogado, como em tantas passagens no filme em que o quadro parece responder questões dos personagens, ou mesma alimentá-las.
                   O saudosismo e a nostalgia presentes no último grande baile são o ápice dos recursos utilizados por Sokurov para reproduzir a sensação de um tempo fluido. O narrador e o marquês se separam – cena que é o auge da sensibilidade fílmica - um segue adiante, e o outro permanece no passado. É como se a Rússia seguisse em frente rumo à construção de sua própria história, independente de paradigmas europeus, mas deixasse ali na Arca tudo que constitui, também, sua identidade. O futuro que se aproxima é inesperado.


Narrador: “Estou triste.Vamos.”
Marquês: “Para onde?”
N: Onde? “Adiante. Adiante...”
M: “O que encontraremos lá?”
N: “Lá? Não sei.”
M: “Ficarei.”
N: “Adeus, Europa.”

            A bela e longa tomada em que os personagens saem do museu prolonga a despedida, Sokurov quer mostrar que a ruptura com o passado é difícil. A leveza e a nostalgia na cena também estão refletidas nos personagens, que apesar de contracenarem de forma teatral em todo filme, reagem viva e emocionalmente ao fim do baile. Ao fim, a câmera se coloca de frente para os atores, conduzindo à saída, acelerando a tomada, percorrendo todo o corredor. A pressa nesse instante em contraste com a lenta saída do salão dão a impressão de que a arca está prestes a partir, porque muito ainda está por vir.


“O mar é tudo ao redor, estamos destinados a velejar para sempre. Viver para sempre.”

           
Referências bibliográficas

ALIGHIERI, Dante. Inferno. A divina comédia. In: Clássicos Abril Coleções, v.6. São Paulo: Abril, 2010. Trad. Jorge Vanderley.

BAUMAN, Zygmunt. A modernidade líquida. Rio de Janeiro: Zahar, 2001.

FERREIRA, Aline Botelho Fonseca. Arca Russa: o uso expressivo da mise-en-scène.  2008. Monografia apresentada na Universidade Federal da Bahia para obtenção do grau de bacharelado em Comunicação Social com habilitação em Jornalismo.

FREGOLENT, Alessandra. Museu Hermitage. Sao Petersburgo. In: Coleção Folha Grandes Museus, v. 16. São Paulo: Folha de S. Paulo, 2009.

HABERMAS, Jürgen. O discurso filosófico da modernidade. São Paulo: Martins Fontes, 2000.

HALLIGAN, Benjamin. The remaining second world: Sokurov and Russian Ark. Inglaterra, 2003. Disponível em: http://archive.sensesofcinema.com/contents/03/25/russian_ark.html Acesso em: 23/10/2010

KOVCHEG, Ruski. Arca Russa. Rússia, 2003. Disponível em: http://www.contracampo.com.br/43/arcarussa.htm Acesso em: 23/10/2010

MACHADO, Álvaro (Org.). Aleksander Sokurov. São Paulo: Cosac & Naify, 2002. 

PINHEIRO, Marcos José. Museu, memória e esquecimento. Rio de Janeiro: E-papers, 2004.

RICOUER, Paul. Memória história esquecimento. Campinas: Unicamp, 2007.

ROCKER, Rudolf. Nationalism and culture. Montreal: Black Rose Books, 1998.

YATES, Frances. A arte da Memória. Campinas: Unicamp, 2007.




[1] Tradução de Jorge Wanderley referente a Clássicos Abril Coleções, v.6, 2010. 

Nenhum comentário:

Postar um comentário