quarta-feira, 29 de dezembro de 2010

Da superação da verdade inexistente (E um pouco de História e Cinema)

Por Victor Vitório de Barros Correia, graduado em História pela Universidade Federal de Pernambuco


Filmes podem ser percebidos de várias maneiras, e nem todas elas abordam a estética da arte. Do ponto de vista do roteiro o cinema é herdeiro da literatura e do teatro; contar histórias está entre suas principais funções e disto deriva um dos maiores empecilhos para que o historiador veja no cinema uma ferramenta eficaz. O problema está na questão do realismo que o cinema pretende ao fazer uso da visão, nosso sentido mais amplo. Por isso, pressupõe-se que o filme histórico planeja narrar sua história de maneira verossímil, quase real, como se levando o espectador a acreditar que vê o passado tal como foi.
            A História “tal como foi”, ou seja, a narrativa objetiva de fatos é finalidade positivista e, portanto, pensamento ultrapassado em meio às teorias da História. Da mesma maneira, porém, a profusão do cinema trouxe-lhe espaço para expandir-se em suas formas narrativas, e o filme, ao invés de ser considerado como pretensão da imagem mais próxima do real – e por isso nada mais que uma quimera superficial – deve ser visto como expressão. O resultado desse pensamento é que o papel do cinema no ofício do historiador depende de dois sujeitos: o cineasta, que constrói sua obra imbuída de sentidos, conscientes ou não; e o próprio historiador, que deve superar as camadas óbvias para analisar seus documentos criticamente.
            Se compararmos essas duas atividades a conclusão é que são, a priori, bem diferentes. O historiador é supostamente comprometido com a verdade, enquanto o cineasta – salvo o documentarista – está mais voltado para a ficção, aproximando-se do romancista. No entanto, pincelando um pouco mais a poeira que reside na questão, logo teremos que admitir que essa distância é ilusória, e uma palavra pode resumir o assunto: autoria. O autor é aquele que cria, que exprime através de uma obra; associar o historiador à criação pode significar equipara-lo ao artista. Não há dificuldade em colocar a historiografia como obra autoral, pois, de Heródoto a Murilo de Carvalho, o estudo da história é associado ao autor que o conduziu.  
            Marc Bloch atenua o problema, ao encarar que “nenhuma ciência seria capaz de prescindir da abstração. Tampouco, aliás, da imaginação”[1].  Como ele mesmo indaga, porque temeríamos essas palavras? Usar de abstração não deve relegar a história ao campo da ficção, mesmo que seu oposto, “verdade”, seja um conceito complexo demais para atribuir à produção do historiador. Em que território, então, ficará o conhecimento histórico?

“Confie apenas na história, nunca no contador[2]

Certa aula, o professor Rodrigo Carrero citou uma anedota do filme Tubarão (Jaws, 1975), sobre a cena final. O roteirista alertou o diretor Steven Spielberg que na realidade um tanque de ar comprimido jamais explodiria da maneira que este desejava para o filme, e a resposta foi apenas de que, caso o público aceitasse o restante do filme, tomaria como verdadeira qualquer cena que surgisse na fita. Simples assim.
Qualquer atividade que exija narrar, contar histórias, parte desse mesmo princípio: tomar a atenção e a aceitação do espectador, capturá-lo em sua trama. Junto com o romancista e o cineasta, o historiador está na empreitada de mostrar algo ao seu público, e sua obra deve ser entendida a partir desse princípio. A verdade completa é, em essência, ininteligível demais para ser alcançada, e por isso não deve ser presumida nem defendida. O que resta, então, é a intenção que impulsiona o ato de criar, ponto importante na análise historiográfica, pois quando essa reflexão trouxer resultados, a veracidade dos fatos se tornará dispensável, e a dúvida que se esvai é um fardo a menos para quem prossegue no estudo historiográfico.
O ofício de criar verdades baseia-se na verossimilhança, ou seja, que o relato seja aceitável dentro de seu próprio contexto. Isso é o que Tolkien chama de sub-criação, processo imprescindível para uma boa ficção. Enfim, quer dizer que deve haver coerência e explicações plausíveis com a lógica humana, embora seja fictício.
Há duas formas interessantes de entender o verbo explicar, de acordo com Paul Veyne[3]. A primeira implica em atribuir um sentido à coisa explicada, isto é, desvendar os princípios por trás do objeto estudado. A segunda forma de explicar consiste apenas em fazer-se compreender a alguém. Enquanto esta segunda proposta visa à associação de idéias para atingir uma finalidade expositiva, a anterior busca o meio que trará as causas. “Aparentemente, a explicação parece, por vezes, tirada do mundo da abstração”[4], diz o autor. Veyne afirma isso em crítica à explicação histórica, mas deve-se levar em consideração que estamos presos a essa sina. Afinal, Clio é filha de Mnemósine[5] e “o processo da memória no homem faz intervir não só a ordenação dos vestígios, mas também a releitura desses vestígios”. Em outras palavras: abstração subjetiva.
Podemos, portanto, comprar o ofício do historiador com o do cineasta, abordando a questão de que o ponto de convergência de História e cinema é a relação entre narrativa e memória, elementos intrínsecos a essas duas artes. Tendo em vista essa relação, quero abordar dois filmes: Rashomon (1951) e Herói (2002).

“Não entendo.”

O diretor Akira Kurosawa é celebrado em todo o mundo, mas em seu tempo sofria críticas dos conterrâneos quanto ao seu estilo. Diziam que ele tinha muita influência ocidental e não honrava a arte dramática japonesa, o teatro .
Seu filme Rashomon é ambientado no passado, mas isso não o torna um filme histórico, uma vez que a alusão temporal pouco – ou nada – importa para o enredo, que é bem simples: um bandido é preso por matar um samurai e os testemunhos são ouvidos um a um – o bandido, a esposa, o espírito do morto e o lenhador que encontrou o corpo contam suas versões do crime.
Não é possível distinguir o período no qual a história se desenvolve, pois as referências visuais fornecidas abrangem vários séculos do cotidiano japonês. Portanto, a história narrada não busca encaixar-se no tempo, mas no próprio ser humano. Os sets minimalistas evitam distrações, deixando mais espaço para a narrativa em si e a atuação. Todas as cenas passam no portão que dá título ao filme e onde são recontadas as versões da história, na floresta onde acontecem os fatos narrados, ou no pátio onde a polícia entrevista as testemunhas.
É nesse contexto que o filme Rashomon lida com metalinguagem: é uma história sobre contar histórias. Mais precisamente, reflete sobre a natureza subjetiva do testemunho, não apenas devido ao narrador, mas também ao espectador, pois aqui este é figura fundamental: as histórias contadas são diferentes versões de um mesmo crime, e todas contradizem umas às outras. O espectador é importante por não ser onisciente da trama, tendo que ouvir cada trecho diferente para julgar por si mesmo. Essa posição de juiz é ressaltada pelos depoimentos, pois, apesar dos personagens se encontrarem na corte de justiça, a câmera não mostra o responsável por averiguar os testemunhos, nem suas perguntas são captadas. Todos os personagens falam olhando para a câmera, narrando diretamente ao espectador sua versão dos fatos.
A psicologia usou o filme na criação de um conceito, o Efeito Rashomon¸ que sugere a subjetividade da memória. Uma vez que a memória e os testemunhos são peças-chave no estudo histórico, o filme corresponde-lhes elucidando que o relato é em si mesmo parcial e, diversas vezes, puramente mentiroso.
Kurosawa, ao fim do filme, faz uma digressão: os personagens que contam a história, desacreditados da natureza humana por causa das mentiras e seus motivos tolos, encontram um bebê abandonado e com ele sua chance de redenção. O diretor é um otimista, deixando que essa virada conduza a conclusão do enredo e realce o tempo presente, com o intuito de renovação. A memória é construída subjetivamente, e sempre pode, vez após vez, ser re-significada para um novo começo, gerando uma complexa relação entre lembrança/passado e esquecimento/presente.
Graças ao caráter “reciclador” da memória, sujeitando o passado ao presente, o lenhador que conta a história de Rashomon não mais precisa entender o íntimo de cada pessoa envolvida no estranho caso que o atormentava.

Tudo Sob o Céu

            Em Herói, Zhang Yimou fez seu primeiro trabalho nos filmes de artes marciais. Antes conhecido diretor de dramas, nesse filme usou sua câmera para captar sentimentos pelas cores e movimentos do estilo cinematográfico conhecido por wuxia, caracterizado por mostrar longos tecidos esvoaçantes, heróis épicos de um passado distante e graciosas coreografias de luta que simulam vôo.
            No filme, três habilidosos assassinos do reino de Zhao pretendem matar o rei de Qin, numa época em que o território chinês estava dividido em sete reinos. O protagonista, chamado Sem Nome, relata ao rei como matou os assassinos que atormentavam os pensamentos do soberano, mas este desconfia do que ouve e conta o que acha que realmente aconteceu, acusando o protagonista de complô com seus inimigos.
A tradução de um conceito gerou controvérsia. No texto original há a expressão tianxia, que significa “tudo sob o céu”, representando o domínio sobre o qual o imperador é responsável por manter a ordem. Os homens que pretendem matar o rei de Qin desistem da idéia ao dar-se conta desse ideal de unidade, que só poderia ser alcançado quando aquele poderoso rei tornar-se imperador, conquistando os outros reinos e, com a unificação da nação, trazendo a paz. Tianxia, então, é um fim acima de qualquer sentimento pessoal, e deve ser atingido não importa o meio.
A controvérsia do conceito é que “tudo sob o céu” inclui todo o mundo humano, dando espaço à interpretação de que essa ideologia fundamenta-se na legitimidade na supremacia da China sobre as demais nações. Embora exista um claro nacionalismo na idéia do filme, Zhang Yimou negou motivações políticas específicas para a realização da obra. No ocidente, então, a expressão foi substituída por “nossa terra”.
Sun Tzu disse que o objetivo da guerra é a paz, e Herói segue a mesma linha de pensamento: avançar no caminho das armas até que superamos a própria arma e não mais precisamos dela. Nesse contexto, Herói supostamente justifica o totalitarismo, re-significando a guerra. O que, no entender de Marc Ferro, é muito comum no cinema. A propaganda política está presente nos filmes desde seus primórdios. O cinema, afinal, é uma ferramenta ideológica, “pseudoimagem” de uma realidade indefinida, como reflete Marc Ferro[6].
Herói, um dos filmes mais belos que já tive o prazer de contemplar, conta um mito fundador para colocar a nação no altar do bem maior, acima da verdade e do indivíduo. Mais uma vez, a memória consiste em re-significar.

Memória e Verdade Não Comungam

Ao analisar filmes, ao assistir obras Rashomon e Herói, fica explícito que a ideologia transcende o fato em si mesmo. A verdade temporal escapa, mas deixa um rastro de inegável utilidade à vida humana. Por isso o filme histórico não depende do real, mas sua existência é previamente válida a partir do inevitável discurso.
Sim, inevitável. Pode ser numa simples nuance, quase “invisível”, como indica Ferro, mas não há narrativa sem posicionamento. O clamor de Bloch: “robespierristas, anti-robespierristas, nós vos imploramos: por piedade, dizei-nos simplesmente quem foi Robespierre”[7], é vão, e o autor sabe disso. Associar memória e verdade pura é um paradoxo: a natureza subjetiva da memória vai de encontro à definição absoluta que a palavra verdade requer. Le Goff não hesita em afirmar a influência que “manipulações conscientes ou inconscientes que o interesse, a afetividade, o desejo, a inibição, a censura exercem sobre a memória individual. Do mesmo modo, a memória coletiva foi posta em jogo de forma importante nas lutas pelas forças sociais pelo poder”[8]
É sobre isso que Marc Ferro trata em todo seu livro Cinema e História: o cinema é uma atividade de militantes. É uma arma intelectual, um esforço pedagógico. É glorificação e exaltação através da narrativa alimentada pela memória. “Aquilo que não aconteceu, as crenças, as intenções, o imaginário do homem são tão História quanto a História” – e o cinema traz tudo isto consigo.

Referências

BLOCH, Marc. Apologia da História. Rio de Janeiro:Jorge Zahar Ed., 2001
FERRO, Marc. Cinema e História. São Paulo, Paz e Terra, 2010.
GAIMAN, Neil. Sandman. Fábulas e Reflexões. São Paulo: Editora Conrad, 2006.
LE GOFF, Jacques. História e Memória. Campinas, Editora Unicamp, 2003.
VEYNE, Paul. Como se escreve a história. Brasília: UnB, 1998.



[1] BLOCH, p. 130.
[2] GAIMAN, p. 89.
[3] VEYNE, p. 82.
[4] VEYNE, p. 84.
[5] Na mitologia grega, Clio, musa da História, é filha de Mnemósine, a Memória.
[6] FERRO, p. 31.
[7] BLOCH, p. 126.
[8] LE GOFF, p. 422.

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