domingo, 23 de janeiro de 2011

A profissão das armas: um filme em seu diálogo com a História, a memória e a narrativa

Por Aline De Biase, graduanda da Universidade Federal de Pernambuco

A construção da narrativa histórica sempre foi objeto de inúmeros escritos. A historiografia está sempre buscando novas formas de melhor narrar o que aconteceu. Em um trabalho que associa memória e testemunhos, tanto escritos como orais, o historiador muitas vezes se coloca como um interprete, fazendo da História seu sonho, ou seja, escrevendo a narrativa de acordo com suas convicções.     
            A memória humana, em si, desde a Antiguidade sempre foi objeto de inúmeros tratados. Buscava-se dominar a memória, traze-la para o campo do compreensível, utilizá-la de acordo com interesses.  Nesse sentido, a associação entre História e Cinema traz a legitimidade da memória, já que a obra filmada coloca em imagens, o que fazemos no processo de rememoração. A memória é imagem.
            O papel do filme, assim, é fazer o trabalho da nossa memória, dos nossos pensamentos, colocando em imagens o que faríamos se estivéssemos lendo um livro, por exemplo.
Quintiliano, o professor de retórica do século I, e que contribuiu, pelas suas esposições racionais e críticas,  para os tratados de memorização pelos quais se baseia a Memória Ocidental, ao acreditar que o melhor auxílio para a memória, e consequentemente as imagens, é a sua associação com lugares, coloca: "As imagens são como palavras com as quais marcamos as coisas que devemos aprender, como diz Cícero, 'utilizamos os lugares como a cera e as imagens como as letras.'" [1]. No filme, as imagens são como as letras dos livros, através dasquais chegamos aos lugares a memória.
            O filme "Il Mestiere Delle Armi", com o título em português de "A profissão das Armas" faz a partir das propostas do diretor Ermanno Olmi, a relação entre a narrativa historica, sua ligação direta com a memória, e a narrativa filmica.
            O diretor e roteirista italiano Ermanno Olmi nasceu em Bérgamo em 1931, numa família extremamente católica e humilde. Tendo estudado na Academia de Artes Dramáticas em Milão, Olmi teve suas primeiras experiências com a câmera, fazendo alguns documentários entre 1953 e 1961. Em 1959, foi a estréia do seu longa "O Grande Relógio", que já possuia as principais características que marcariam os filmes de Olmi, e que ganhou os críticos do Festival de Veneza de 1961. O grande sucesso veio em 1978, com "A Árvore dos Tamancos" considerada sua obra-prima e que ganhou a "Palme d'Or", no Festival de Cannes. Esse filme traz a visão poética de Olmi, dialogando realismo e sentimentalismo, quanto ao ambiente rural, ou seja, quanto ao ambiente em que o diretor cresceu e ao qual é ligado.
            Após um período afastado das produções cinematográficas, por causa de uma grave doença, o autor retornou com o filme "Viva a Senhora!" em 1987. É nessa fase, de retorno, que após a produçao de três obras, Olmi lança "A profissão das Armas" em 2001, fazendo sucesso no Festival de Cannes, do mesmo ano. Esse filme, que narra a história verídica de Giovanni De Médici -  rico italiano, capitão dos "condottieri" Bandas Negras e que foi o primeiro soldado da História a ser morto com bala de canhão -  chegou a ser aclamado internacionalmente e ganhou nove "Davi di Donatello", em 2002, nas categorias: "melhor filme", "melhor diretor", "melhor roteiro", "melhor produtor", "melhor fotografia", "melhor edição", "melhor música", "melhor figurino" "melhor cenário".
            Depois de "A profissão das Armas", Olmi produziu 3 filmes, entre 2003 e 2007. A partir do último filme, "Centochiodi", Olmi decidiu se dedicar apenas a produção de documentários. Em 2008, o conjunto de sua obra é reconhecido e ele recebeu o prêmio "Leão de Ouro", no Festival de Veneza.
            A partir da contextualizaçao das obras de Ermanno Olmi, é necessário esclarecer que a escolha de análisar "A profissão das Armas", é extremamente subjetiva, pelo seu caráter significativo de relação entre a História e a narrativa cinematográfica. O filme, em si, faz uma síntese das características do diretor, ao misturar o processo do documentário com o de longa metragem, e ao mostrar seu apelo ao rural, ao catolicismo e seus defensores e a solidão e suas consequências.
            Do ponto de vista técnico e do espectador atento, o filme pode ser dividido, fantasiosamente, em três partes: a primeira, consiste em uma apresentação do filme, pelo narrador tanto do filme como das fontes históricas, Pietro Aretino; a segunda, marca a guerra e as consequencias que levaram à morte de Giovanni; e a terceira parte, consiste na agonia do capitão De Médici, com suas lembranças e com a solidão da morte próxima.
            A primeira parte, pode ser considerada a parte documental do filme. Seguindo o ritmo da principal fonte histórica para a vida de Giovanni de Médici, escrita por Pietro Aretino, o diretor coloca o espectador em contato direto com a fonte. Esse efeito é alcançado, quando Olmi "faz" os principais personagens do acontecimento narrarem a história do Capitão da Banda Negra.
            Os escritos de Pietro Aretino -  poeta, escritor e dramaturgo italiano -  estão dentre as principais fontes sobre a vida de Giovanni De Médici. Por ser amigo íntimo de Capitão da Banda Negra, o escritor teve aproximação aos acontecimentos e sentimentos desse importante soldado. É através das memórias de Aretino, que se narra historiograficamente esse personagem. No filme de Olmi é a partir dele, também, que se narra o filme, dando assim uma maior ênfase na estética documental. Considerando-se que a a memória utiliza-se da imagem para a representação do passado, pode-se pensar que Olmi segue a mesma linha.
            Através de um apelo às memórias de Aretino, como memórias "bem-sucedidas", ou seja de aproximação e fidelidade ao passado, Olmi apresenta sua versão cinematográfica da vida de Giovanni, pretendendo maior aproximação possível com o verídico. Segundo Paul Ricoeur, ao fazer um "Esboço fenomenológico da memória", a preferência pela memória "certa" vem pela "convicção de não termos outro recurso a respeito da referência do passado, senão a própria memória..."[2]
            A segunda parte, tem como plano central, a Guerra Italiana de 1521-1526, com o confronto entre os italianos do Exército Pontífício - formado por tropas mercenárias reunidas em torno de um senhor, os "condottieri" - e os "lansquenês"do Sacro Império Romano-Germânico. Ulizando de tons escuros e muita neblina nas cenas de guerra, Ermanno Olmi, faz não só os embates entre os exércitos, mas também entre táticas de guerrear antigas e novas - ou seja, cavalaria pesada, método medieval contra artilharia, método moderno -, e entre católicos e protestantes.  
            Nessa parte, o canhão é apresentado ao espectador. A cena, sem falas, consiste em um teste que os alemães fazem para se certificar do impacto que a bala do canhão faz à armadura. Simbolizando o impacto do novo no antigo. Ao ver a cena, o espectador sente antecipadamente o fim de Giovanni. Essa sensação é certificada com a cena seguinte, quando Aretino lê para Giovanni a carta de Alfonso D'Este, o Duque de Ferrara, negando o pedido de artilharia feito pelo capitão De Médici. Entretanto, é como se as cenas tivessem sido colocadas em desordem, já que a segunda cena é a causa da primeira. Um recurso utilizado por Olmi para demonstrar sua opinião acerca do fato histórico. Ao negar o pedido de Giovanni, o Duque de Ferrara, que é colocado como traidor, traça o destino do Capitão.
            Nessa segunda parte, apenas as cenas em que se quer mostrar a tranquilidade são colocados tons claros e cores "vibrantes". Como uma espécie de transição, para a "terceira parte", o autor já explora aí as lembranças de Giovanni, sendo esse os únicos recursos que aproxima o espectador aos "sentimentos" do personagem, ou seja, os únicos recursos que afastam do domínio dos escritos de Aretino.
            A última parte, fase mais clara do filme, o diretor mostra os últimos momentos de Giovanni, consequência do tiro de canhão. Nesse momento são exploradas a solidão do capitão, suas mais distintas e variáveis lembranças e sua intimidade. Desde o angustiante momento em que sua perna é retirada até sua morte pelo ferimento, o filme é apresentado sob sua visão, ficando a câmera na maioria das vezes no seu plano.
            Aretino fala, nessa parte, mas muito pouco, o destaque agora é de Giovanni De Médici, e suas lembranças. Sobre essas pode-se citar Paul Ricoeur: "as lembranças podem ser tratadas como formas discretas com margens mais ou menos precisas, que se destacam contra aquilo que poderíamos chamar de um fundo memorial, com o qual podemos nos deleitar em estados de devaneio vago." [3]
            A morte de Giovanni de Médici, e final do filme, representa no contexto dessa obra de Olmi, a morte do antigo, da cavalaria medieval, do mundo católico, e a consequente predominância do moderno e dos conflitos da Reforma Protestante.
             Do ponto de vista de associação entre memória, História e construção da narrativa cinematográfica, o filme de Ermanno Olmi, "A profissão das armas", faz muito bem esse diálogo. Partindo do testemunho de Aretino, ou seja, da fonte histórica, como "estrutura fundamental de transição entre a memória e a história", como colocou Paul Ricoeur, o filme de Olmi consegue reunir a ficção e o real, e as narrativas do filme e da História.







[1]  QUINTILIANO apud YATES, Frances. In: " A Arte da Memória", p. 41.

[2] RICOEUR, Paul. "A Memória, a História, o Esquecimento. Cap. 1.

[3] RICOEUR, Paul. Ibidem

2 comentários:

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  2. Cara Aline de Biase

    Li seu artigo e achei super- interessante, pois estou exatamente pesquisando artigos que estejam retratando sobre: História, a memória e a narrativa. Fui incubido de fazer um trabalho a cerca de como o historiador trabalhar com o cinema em suas obras. Gostei bastante do seu pensamento, pois passei a conhecer mais um pouco como a história resgata essas memórias e incrementa nela esses contéudos que servem para a historiografia do século XXI.

    Ateciosamente
    Emanoel Cunha

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